quarta-feira, 17 de abril de 2024

Cultura: Tongue-in-cheek vs. Straight Face

Dizer que um filme é "tongue-in-cheek" ("língua na bochecha") é dizer que ele não se leva a sério, que não é realista, está sendo feito de forma irônica, se autoparodiando. Esta costuma ser a atitude padrão dos filmes que exageram a ação e o heroísmo dos personagens pra zombarem do gênero (Idealismo Corrompido), porém recentemente assisti a alguns filmes que me deram a impressão de uma nova tendência estar surgindo: a de remover a ironia e simplesmente mostrar absurdos com uma atitude séria. Filmes como Donzela, Beekeeper: Rede de Vingança Godzilla e Kong: O Novo Império, por exemplo, levam a ação perto do nível do ridículo, porém já não têm sempre as piadinhas pra deixar óbvio pro espectador que aquilo se trata de algo irônico e autoconsciente. Até mesmo o remake de Matador de Aluguel, apesar de ter os comentários engraçadinhos, já flerta com essa nova categoria.

Isso não quer dizer que esses filmes estejam se livrando do Idealismo Corrompido e passando a levar as aventuras e os heróis a sério. Eles estão apenas adotando uma nova tática para invalidar as histórias: em vez do humor "tongue-in-cheek", agora eles estão passando para o humor "straight face" — que é quando graça vem de você manter uma expressão séria enquanto faz algo evidentemente absurdo.

Esta é a técnica de paródias como Todo Mundo em Pânico e Corra que a Polícia Vem Aí. A diferença é que em comédias, os exageros e absurdos são calculados para provocarem riso. A burrice e a ausência de lógica são levadas ao extremo para se tornarem piadas e gerarem um efeito cômico inconfundível. Isso não acontece nos filmes que citei. Esses filmes simplesmente mostram ações impossíveis, desnecessariamente exageradas, apresentam desenvolvimentos de trama que não têm um pingo de lógica (e nem disfarçam isso), mas mantendo uma atitude séria — não como quem quer que você dê uma gargalhada, mas como quem parece estar se deleitando com a ideia de não precisar se limitar à "ditadura" da lógica, da realidade, e poder escapar impune dizendo mentiras descaradas (uma atitude que está em plena harmonia com a era da "pós-verdade" e com a irracionalidade crescente da cultura).

Por serem produções caras de estúdio, nesses casos você nem consegue considerar a hipótese dos cineastas serem de fato sem-noção, como acontece em produções low-budget tipo Birdemic ou Sharknado. E também não estamos falando de filmes de Bollywood, que dariam justificar dizendo que a cultura inteira seria sem-noção. Aqui, você sabe que os cineastas têm mais "noção" do que os filmes sugerem, mas eles resolveram de propósito ignorar qualquer bom senso, como se a autoindulgência intelectual dos cineastas passasse a ser a real fonte do entretenimento.

A franquia Velozes e Furiosos me parece ter sido pioneira nessa tendência, pois já vem adotando esse comportamento desde a parte 6 no mínimo (quando vi a cena do avião cargueiro na parte 6 e a do submarino na parte 8, eu sabia que estava diante de algo novo e estranho no blockbuster americano). O sucesso de RRR nos EUA acho que também foi um marco importante nessa evolução.

Ainda é cedo pra dizer se isso é uma tendência real ou não, mas se for, essa "Bollywoodização" de Hollywood não representará progresso algum — fazer virtudes e o entretenimento parecerem coisas tolas, impossíveis ou ridículas de propósito será sempre uma corrupção do Idealismo, com ou sem língua na bochecha.

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Haters do YouTube

Depois da postagem 6 momentos que me fizeram desgostar da Rainha Elsa de "Frozen", minha crítica em vídeo do filme Close foi provavelmente a que gerou o maior debate. Já respondi todos os argumentos que surgiram na seção de comentários YouTube, mas os comentaristas continuam trazendo de volta os mesmos pontos. E há uma grande semelhança entre este debate e o de Frozen: nos dois casos, o que incomodou as pessoas foi o fato de eu não ter achado convincente o sofrimento do personagem, a ponto deste sofrimento justificar seus atos destrutivos. Pra mim, a questão de Close era mais de credibilidade, roteiro, tanto que eu reclamo igualmente de filmes que não são convincentes ao retratar o heroísmo de algum personagem. Mas as pessoas ficaram tão tocadas com o drama do garoto Remi, que parece que se ofenderam com meu olhar "frio" sobre a história. Um pouco, quem sabe, como eu me sentiria se alguém ficasse apontando inconsistências na caracterização de um Indiana Jones, que colocassem sua estatura em xeque. Só que neste caso, o que me levaria a ficar na defensiva seria meu desejo de preservar a visão heroica que tenho do personagem. Já no caso de Close/Frozen, as pessoas ficam na defensiva pois querem preservar o status dos personagens como vítimas indefesas — é isto que eu estou colocando em xeque quando questiono a depressão de Remi. O debate acaba servindo como uma boa ilustração dos 2 tipos de espectadores (os que buscam inspiração na arte vs. os que bucam conforto) que discuto no texto O que é Idealismo.

Falando em "haters", uma coisa que me surpreendeu no YouTube foi a ausência de críticas sérias às minhas análises. Quando tocamos em assuntos polêmicos ou temos opiniões que vão contra o mainstream, às vezes ficamos com receio de colocar essas ideias no mundo e testá-las com o público, pois sabemos que há sempre uma chance de estarmos errados e de alguém trazer à tona algum fato inesperado que invalide nossas conclusões. Mas não só isso nunca aconteceu durante este ano todo que fiz críticas em vídeo (os comentários negativos em geral só expressavam reprovação, mas não tentavam contra-argumentar) como percebi também uma tendência curiosa: praticamente toda vez que chegava um comentário mais agressivo, confiante, de mais de 1 linha, tentando esboçar um quase-contra-argumento, a pessoa era tão sem-noção que só de entrar rapidamente no perfil dela eu concluía que era inútil perder meu tempo respondendo. Alguns exemplos que fiz questão de salvar:

Do vídeo sobre Som da Liberdade (2023):






Do vídeo sobre Idealismo Corrompido:



...daí entrando no canal pessoal do autor do comentário (um professor) me deparei com este vídeo dele ⬇



Os comentários no vídeo de Close foram os mais honestos, tanto que parei pra responder vários, mas mesmo assim, ninguém disse nada realmente convincente (quando revi o filme pra ter certeza do que estava falando, fiquei chocado de ver que minhas impressões iniciais eram ainda mais óbvias do que eu lembrava, e que o público estava fazendo um malabarismo incrível pra acreditar que certas cenas mostravam um quadro depressivo grave). Mas tirando este caso, os 3 comentários acima foram talvez os ataques mais "desafiadores" que recebi esse tempo todo.

Claro que meus vídeos tiveram pouco alcance. Alguém com centenas de milhares de seguidores certamente deve receber críticas de pessoas mais interessantes. Mas essa experiência já serviu pra mostrar que aquela noção que eu tinha, que seria confrontado por argumentos fortes e válidos sempre que postasse algo impopular, se provou algo muito mais hipotético do que eu poderia ter previsto.

terça-feira, 9 de abril de 2024

A Primeira Profecia

Estreia notável da diretora Arkasha Stevenson, que só tinha dirigido curtas e séries de TV até agora. O filme não é livre dos clichês irritantes do gênero — as alucinações que só servem pra gerar um jump-scare inútil, os desenhos infantis que sempre revelam algo sinistro etc. — só que o resto do filme é tão autêntico pros padrões atuais, tão cheio de detalhes e decisões ousadas, que você conclui que esses clichês devem ter vindo mais das exigências do estúdio do que de uma falta de imaginação da própria cineasta. Nas mãos de um diretor mais comum, o filme seria apenas o que ele aparenta ser à distância — mais uma produção de "pedigree" duvidoso que só existe pra lucrar em cima de uma franquia popular. Mas em vez de entrar no piloto automático, Arkasha Stevenson (que me parece acima do material artisticamente) decidiu levar o filme a sério e aproveitar a oportunidade pra mostrar seu potencial como realizadora. A primeira coisa que me chamou atenção foi que o filme traz uma epistemologia bem mais racional que de costume pro gênero. Não há aqui, por exemplo, aquele clima tenebroso constante que dá a impressão que os personagens já sabem desde o início que estão num filme de terror. Há diálogos descontraídos e até bem humorados na introdução, que criam um universo crível e personagens mais fáceis de gostar. A religião também é mostrada por uma lente mais real — a igreja aqui existe dentro de um contexto político/histórico reconhecível, está sujeita a erros, corrupções, as noviças são mostradas como jovens devotas, mas que ao mesmo tempo questionam a igreja em certas áreas, têm vida privada, impulsos sexuais normais etc. O elenco também é um destaque. A protagonista Nell Tiger Free está muito bem, mas me chamaram a atenção especialmente alguns coadjuvantes como a amiga dela interpretada pela Maria Caballero — uma atriz com uma presença marcante e um rosto que a tornaria perfeita para um biopic da Elizabeth Taylor ou da Viven Leigh. Sônia Braga como freira do mal foi outra escolha de casting inusitada que funcionou melhor do que se poderia esperar. O material não permite que a cineasta salve completamente o filme, mas mesmo os clichês ela faz uma espécie de alquimia cinematográfica pra tentar transformar em algo mais interessante. Há uma cena de parto, por exemplo, que acaba não passando de uma dessas alucinações bobas — mas que apresenta uma das imagens mais horríveis (no bom sentido) que vi no terror recentemente. Em outro momento, a personagem precisa ficar fazendo aqueles contorcionismos nonsense de mulher possuída, e a cena poderia muito facilmente ter caído no ridículo, pois dura vários segundos e foi filmada em plano aberto, com poucos cortes, o que evidencia qualquer defeito. Mas a cena acaba funcionando por conta da direção cuidadosa, e se tornando até intrigante do ponto de vista técnico/"coreográfico". Acabei procurando uma entrevista depois com a Arkasha Stevenson pra saber quem era ela, e o que ouvi só confirmou minha impressão de que o filme, apesar dos problemas, tinha sido feito por um cineasta mais inteligente e autêntico que a média, com boas premissas cinematográficas (o oposto do que senti quando vi entrevistas com o David Gordon Green depois de O Exorcista: O Devoto).

The First Omen / 2024 / Arkasha Stevenson

Satisfação: 7 (Idealismo Imperfeito)

segunda-feira, 1 de abril de 2024

Smartphones, Redes Sociais e o Declínio Cultural

Há muita discussão hoje sobre o impacto dos celulares e das redes sociais na saúde mental da população, algumas um tanto tendenciosas, mas este livro The Shallows do Nicholas Carr conseguiu fortalecer minha impressão de que a internet, smartphones e as redes sociais são alguns dos principais "vilões" por trás da decadência cultural das últimas duas décadas. É uma teoria bem mainstream, mas que é frequentemente menosprezada no meio objetivista, que costuma atribuir tudo a intelectuais e correntes filosóficas.

Continuo achando que a geração Millennial foi azarada e estava fadada a um certo pessimismo na vida adulta pelas razões que discuto no vídeo Idealismo Platônico. Este seria um fator importante também, mas entre os dois "vilões", as mudanças promovidas pela tecnologia me parecem ainda mais fortes e permanentes.

Muitos rejeitam a ideia de que a tecnologia poderia fazer as pessoas mudarem de valores e comportamento, pois a tecnologia seria apenas uma ferramenta. Estes "instrumentalistas" acham que, se as pessoas mudam, então a culpa seria da fraqueza de caráter delas, não da ferramenta. Mas é justamente neste ponto que o livro mergulha a fundo, demonstrando como invenções simples como o relógio, o mapa ou o livro transformaram para sempre a maneira como o ser humano vive e pensa. O autor não se mostra contra o progresso, contra o capitalismo, nem é um "determinista tecnológico". Mas ele aponta como cada tecnologia nova que invade nossas rotinas carrega uma "ética intelectual" particular, que pode ser tanto positiva quanto negativa, na medida em que seu funcionamento incentiva ou desincentiva hábitos intelectuais saudáveis no usuário — e sua tese é que a internet teria adquirido uma péssima ética intelectual, que promove uma série de problemas cognitivos: a mera presença do celular no nosso campo de visão, mesmo desligado, já demonstrou em experimentos ter o poder de diminuir nosso desempenho em atividades intelectuais.

A mídia de massa do século 20, especialmente a TV, já foi alvo de críticas parecidas no passado, e o autor não ignora isso. Porém ele discute como o impacto da TV nos hábitos cognitivos do espectador era limitado se comparado ao da internet, já que ninguém andava com uma TV no bolso 24h por dia. Além disso, a TV nunca se tornou um bom substituto para a leitura de livros. Ao longo do século 20, livros continuaram sendo vistos como as melhores fontes de conhecimento. Mas a internet mudou tudo — a infinidade de conteúdo relevante (porém rápido e fragmentado) que ela disponibiliza, fez da internet a primeira grande ameaça existencial para o livro e para a leitura linear e focada que era parte de sua "ética intelectual".

Outro livro que li sobre o tópico, Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais, de Jaron Lanier, discute mais como as redes sociais (e empresas como Google, que também se baseiam na "economia da atenção") criaram um modelo de negócio que, além de fragmentar o pensamento do usuário e promover hábitos cognitivos ruins, promove também polarização social, desentendimento, pessimismo, baixa autoestima, já que elas são serviços gratuitos que lucram com base em anúncios, e os algoritmos provaram que emoções negativas geram mais engajamento e tempo de tela que emoções positivas.

Ou seja, muitos os problemas ideológicos e estéticos que venho apontando no universo da arte na última década — problemas ligados à Não-Objetividade, ao Idealismo Corrompido, ao declínio dos padrões de qualidade — se não foram diretamente criados, foram no mínimo potencializados pela internet e pelas redes sociais.

Vou dar alguns exemplos abaixo de como isso pode ter ocorrido:

- Por conta da neuroplasticidade, o uso constante da internet e dos smartphones muda a maneira como usamos nossos cérebros, de forma que passamos a dar preferência pra certos padrões de pensamento mesmo quando estamos desconectados: a maneira fragmentada, descontextualizada, veloz e constante com que informações chegam até nós via a internet faz com que a gente se habitue a esse estilo caótico de pensamento, e vá perdendo aos poucos a capacidade de pensar de forma linear, focada, ter momentos silenciosos de observação, reflexão etc. (Se considerarmos certos clássicos da ficção-científica como indicadores dos hábitos cognitivos dos espectadores em diferentes décadas, daria pra fazer uma análise fascinante começando com 2001: Uma Odisseia no Espaço, passando por MatrixA Origem, e terminando em Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo).

- Ao olharmos cada vez mais para telas e menos para o mundo físico, nos habituamos a um universo altamente volátil, em constante mudança, e que se apresenta de maneira diferente/customizada para cada usuário — o que pode fazer as pessoas sentirem que a realidade em si é subjetiva e instável, que não existe uma única verdade.

- A sobrecarga da memória de trabalho faz com que a gente tenha menos capacidade de aprender, absorver e processar informações. Algumas das coisas que mais sobrecarregam nossa memória de trabalho é o multitasking, a atenção dividida, e estar com o cérebro no modo "solucionar problemas" — estados mentais constantemente estimulados pela internet.

- Há estudos que mostram que a facilidade de encontrar informações a qualquer momento e em qualquer lugar faz com que as pessoas aprendam menos e tenham menos memória.

- Conteúdos criados na era da internet tendem a ser menos precisos e profundos, já que a internet é uma "editora" que te permite publicar tudo instantaneamente, sem custo, editar e reeditar seu material quantas vezes for preciso, mesmo depois de publicado. Quando isso tudo tinha um custo, as pessoas precisavam ser muito mais disciplinadas com o que elas produziam, e pensavam mais a longo prazo. Mas a internet normalizou o conteúdo imediato, descartável, e essa mentalidade passou a afetar também o que se cria fora da internet (eu mesmo, que escrevo primeiramente em um blog, sei que não desenvolvi disciplinas importantes que críticos que escrevem para jornais e revistas tiveram que desenvolver).

- Por motivos já óbvios, as redes sociais tornam as pessoas mais inseguras, não só porque agora elas são constantemente expostas a milhares de pessoas ao redor do mundo melhores que elas em diversos aspectos, mas também porque a ética intelectual das redes sociais (ênfase em imagens, likes, seguidores, engajamento rápido, etc.) treina as pessoas a estarem sempre pensando sobre suas imagens e sobre a opinião dos outros a respeito delas (pense em como a qualidade e a quantidade de câmeras num celular se tornou um atrativo maior do que qualquer outra funcionalidade). O fato de tudo que fazemos na internet ser avaliado publicamente e gravado pra posteridade é um agravante — faz com que as pessoas sejam menos espontâneas, menos autênticas, e fiquem sempre preocupadas com possíveis deslizes que possam arruinar suas reputações no futuro. No passado, apenas artistas e figuras públicas tinham que ficar pensando constantemente sobre suas imagens e lidando com câmeras — e vale lembrar que essas pessoas sempre tiveram uma tendência ao desequilíbrio emocional. Hoje, quase todo mundo precisa ter um lado artista/figura pública. Há aquele ditado que devemos ouvir mais do que falar, já que temos 2 ouvidos e apenas 1 boca. Se há algum sentido nessa associação entre biologia e ideais de comportamento, é interessante pensar que temos apenas 2 olhos, e que nenhum deles está voltado para nós mesmos. E que além disso, não existe espelho no mundo natural. Portanto, daria pra supor também que esta preocupação constante com autoimagem e com o olhar do outro não é natural nem saudável.

- A internet também torna as pessoas mais pessimistas e irritadas, não só porque agora temos um contato infinitamente maior com o lado podre do ser humano, com a infinidade de pessoas de valores malignos no mundo que antes nem saberíamos que existiam, mas também porque os algoritmos lucram em cima dos sentimentos negativos e conflitantes do usuário, que são mais eficientes em prendê-lo nas plataformas e fazê-lo visualizar mais anúncios. Boa parte do mal-estar social que existe hoje se deve a isso. No livro Dez argumentos, o autor Jaron Lanier explica que qualquer notícia ou assunto relevante que surge na mídia, mesmo que comece como algo neutro politicamente, é rapidamente transformado em uma polêmica por causa desta lógica fria dos algoritmos. Se, por exemplo, os algoritmos entendem que meu perfil é de um usuário com uma inclinação a apoiar Israel em conflitos do oriente médio, ele tem um incentivo a fazer surgir na minha tela alguma postagem ou comentário irritante de uma pessoa pró-Palestina, pois seus cálculos mostram que este tipo de postagem me fará ficar alguns minutos a mais na plataforma.

- A internet desincentiva o talento e a expertise. Como sucesso no mundo da internet é baseado em visualizações, engajamento — que dependem de imagem, da captura da atenção e de coisas extremamente efêmeras — o incentivo para alguém estudar e se tornar um expert em qualquer coisa hoje é muito menor. Por conta disso, uma série de indústrias, atividades e profissões começaram a ficar mais superficiais e a adotar táticas vulgares para se adequarem ao novo modelo de sucesso. Isso contribuiu para a queda dos padrões estéticos na arte, da qualidade dos serviços, da confiabilidade das informações na mídia. Faz também com que as pessoas se sintam mais impotentes, sem saber o que fazer para garantir um futuro de sucesso. No passado, quando seu sucesso (ou fracasso) era mais baseado em mérito e performance, seu destino parecia mais sob seu controle — você poderia usar racionalidade e bom senso para entender o que precisava ser feito para melhorar sua performance. Hoje, não há uma relação tão clara entre performance, mérito e resultados. Sucesso profissional vem se parecendo cada vez mais com sucesso no cassino — e quem irá dedicar anos e anos ao estudo, à prática, ao aprimoramento, se um amador que é bom com imagem e algoritmos pode ter as mesmas chances de sucesso que você; e se todo seu esforço pode ir por água abaixo da noite pro dia por causa de um cancelamento arbitrário?

- O estatismo, a organização da sociedade em tribos, o autoritarismo/intervencionismo na política, a cultura woke, políticas de "Diversidade, Equidade e Inclusão" e outros fenômenos modernos como o das Fake News são todos também consequências de uma população que se tornou mais pessimista e insegura, tanto emocionalmente quanto cognitivamente.

Estamos tão habituados aos estímulos constantes da internet que às vezes eles podem parecer inofensivos. Mas outro dia relendo um trecho de The Art of Non-Fiction, da Ayn Rand, ela me lembrou do quão sensível nosso subconsciente pode ser a estímulos externos, e o quão destrutivos eles se tornam quando não tomamos a iniciativa de impor certos filtros. O trecho me chamou atenção especialmente pelo livro The Shallows ter descrito o computador moderno como "um ecossistema de tecnologias de interrupção":

Se acordo pela manhã e sei, por exemplo, que terei um compromisso às 16h, eu não consigo escrever naquele dia. É como se minha mente se fechasse e se recusasse a trabalhar... Para escrever, você precisa se concentrar e manter seu subconsciente aberto, para que ele formule as ideias que você precisa. Se você sabe que em algum momento este processo poderá ser interrompido, independentemente do seu progresso, isto irá te travar completamente. Por isso, eu não aceito compromissos diurnos exceto quando são absolutamente inescapáveis... Preparar a mente para escrever é como esquentar um forno de fundição, que leva semanas até que ele chegue na temperatura certa para derreter aço. Requer um nível tão alto de concentração que uma interrupção é como o forno subitamente ficar frio. O tempo que leva pra você conseguir voltar a trabalhar é muito maior do que o do compromisso que causou a interrupção. Não só você não conseguirá trabalhar de novo naquele dia, como você provavelmente irá perder o dia seguinte também. O que você precisa subconscientemente para escrever é aquele senso de um futuro imediato sem interrupções. Que pelo menos naquele dia — e preferencialmente nos dias seguintes — você sabe que estará livre para se dedicar apenas à escrita solitária. Algumas pessoas são mais maleáveis, e muito depende da psico-epistemologia de cada um, mas é um absoluto que você não pode trabalhar se você sabe que uma interrupção é iminente.

sexta-feira, 29 de março de 2024

Quiet on Set: The Dark Side of Kids TV

Série documental que expõe uma série de abusos que ocorreram nos bastidores da Nickelodeon nos anos 90 e 2000. Eu vi os 4 episódios em uma tacada só (foi anunciado que um episódio extra será lançado em breve), o que mostra que o documentário é no mínimo bem feito no sentido de ter uma narrativa que prende a atenção. Mas depois de ver a série toda, eu acabei revendo o 1º episódio, e constatei que muito dessa atenção foi capturada de forma desonesta pela série, que promete revelações gravíssimas (especialmente a respeito do produtor Dan Schneider) que no fim não são exatamente o que se espera.

A série mostra pelo menos 1 caso indiscutível de pedofilia — que envolve o assistente de produção Jason Handy, que enviou fotos explícitas pra uma atriz-mirim de apenas 11 anos — e isso dá bastante credibilidade pro documentário. Outro caso claro de abuso é o do ator Drake Bell, que é o que vem ganhando mais repercussão na mídia, embora eu coloque o caso dele mais numa categoria de assédio/estupro do que de pedofilia exatamente, pelo simples fato dele ter 15 anos na época (já ter passado pela puberdade). Esta é uma diferenciação polêmica de ser feita, pois um estuprador e um abusador de crianças são ambos imorais, e diferenciá-los faz parecer que você quer "passar pano" para um ou para outro. Mas acho que há uma diferença significativa entre os dois casos que a mídia frequentemente gosta de ignorar: alguém que tem desejo sexual por uma criança — um ser não-sexual biologicamente, que tem uma confiança inocente nos adultos por nem ter concepção ainda do que é sexo — é naturalmente visto como alguém doentio. Culturalmente, a figura do pedófilo tem uma aura meio satânica que parece exclusiva desse tipo particular de distúrbio. Nem mesmo terroristas às vezes são vistos pela sociedade de maneira tão desumana.

E pra mim o grande problema da série é a maneira como ela pega "emprestada" esta aura satânica da pedofilia (que só existe nesse contexto específico de um adulto abusando sexualmente de uma criança) pra colorir uma série de outras acusações — algumas que nada têm a ver com abuso — e dar a impressão que elas vêm do mesmo lugar.

Desde o início, a série define Dan Schneider como o grande vilão da história: o produtor todo-poderoso que aparentemente será exposto como o Harvey Weinstein da Nickelodeon. Mas o que o documentário tem pra apresentar contra Schneider não é nem de longe tão grave quanto esses outros casos que são apresentados ao longo da série. No primeiro episódio, há uma clara insinuação de que Schneider teria uma proximidade estranha com a atriz Amanda Bynes, e um bom trecho do documentário é dedicado à exploração dessa relação "suspeita". Considerando a gravidade dos outros casos, você assume que Schneider estaria molestando Bynes também, e que isso será revelado em episódios futuros. (Enquanto insinuações desse tipo são feitas, a edição frequentemente insere fotos de Schneider na tela, sempre sorrindo, mas sob uma luz pouco lisonjeira e com uma música sinistra de fundo, aproveitando o Efeito Kuleshov pra transformar sua expressão na de um velho safado.)

(SPOILERS) Só que nunca é dito que Schneider abusou sexualmente de Bynes nem de qualquer outra pessoa. As acusações contra ele envolvem principalmente comportamentos tóxicos no set, geralmente envolvendo mulheres da equipe (o hábito dele de pedir massagem nas costas, ou de fazer piadas sexuais desrespeitosas) e também o senso de humor duvidoso de seus programas, que frequentemente colocavam crianças em sketches com conotação sexual. Mas tudo isso pra mim cai na categoria "coisas sem-noção dos anos 90". Não estou dizendo que essas coisas eram apropriadas, mas se você for analisar os anos 90/2000 sob a ótica do que é considerado correto hoje, muita coisa vai parecer um absurdo completo, do Programa Silvio Santos ao Xou da Xuxa.

E se você conviveu nos bastidores da TV/cinema/publicidade naquela época, você sabe que o tipo de comportamento denunciado pelo documentário era absolutamente típico. Não há nada de especial no caso de Schneider que o faça parecer uma anomalia pra época. Ainda assim, o documentário mostra tudo que havia de desagradável naquele ambiente de trabalho com o mesmo tom satânico que discute abusos de crianças — até coisas que nem erradas são, como o simples fato de algumas crianças serem cortadas dos programas depois que perdiam relevância ou ficavam velhas demais pro papel (frustrações que qualquer um no showbusiness precisa enfrentar).

Há também o caso da roteirista que descobre estar trabalhando por um salário menor que o estabelecido pelo sindicato dos roteiristas (embora ela tivesse concordado com o salário) e usa isso em um processo contra Schneider — algo que só é antiético pra quem acha que o poder do WGA é absolutamente ético.

Ou seja, o documentário tem coisas relevantes pra denunciar, não é 100% desonesto, só que em muitos momentos ele se torna mais um desses documentários com viés de esquerda que sabem que dá ibope manchar a reputação de empresas e pessoas de sucesso, especialmente essas que têm uma imagem pura e idealista — afinal, se você expõe casos de pedofilia no Talibã, ninguém te dá muita bola, mas se você pega a Disney ou a Nickelodeon e as associa a algo maléfico, cria-se um ar conspiratório que deixa todos fascinados.

Não há nada de surpreendente no fato de ambientes como o da Nickelodeon serem atraentes para pedófilos e eventualmente algum acabar se infiltrando — da mesma forma que não é surpreendente bancos serem ambientes atraentes pra assaltantes. É desonesto criar uma associação maléfica entre o ambiente e o criminoso, como se o propósito da instituição fosse facilitar o crime. Considerando que a Nickelodeon tem mais de 40 anos, os 2 casos de abuso registrados pela série não transformam o canal exatamente em um antro de pedófilos. Ainda assim, é possível que essa associação entre a Nickelodeon e pedofilia seja criada por causa do documentário e se mantenha por anos no imaginário popular, causando danos à empresa, da mesma forma que Blackfish (2013) mudou pra sempre a imagem do Sea World. Nesse sentido, a série se torna em si abusiva, algo que no futuro poderia virar tema de um documentário igualmente polêmico, expondo os horrores da cultura do cancelamento dos anos 20. 

Quiet on Set: The Dark Side of Kids TV (2024)

quarta-feira, 27 de março de 2024

Testosterona vs. Autoestima

É importante diferenciar o que chamei de "masculinidade primitiva" na crítica de Matador de Aluguel (2024) de casos em que o filme projeta Autoestima, que é um dos pilares do Idealismo.

E o que diferencia um caso do outro é a presença ou a ausência de valores morais e de lógica na base da história.

Por exemplo: alguns filmes do James Cameron também têm bastante testosterona, tiroteios e frases de efeito que projetam um senso de invencibilidade, mas eles são superiores aos "macho filmes" típicos, desses estrelados por Charles Bronson, Van Damme ou Steven Seagal, pois a ação não é gratuita, não é divorciada de contexto narrativo, de plausibilidade, de objetivos positivos, e os one-liners são realmente merecidos pelos heróis: quando o Schwarzenegger diz "Hasta la vista, baby", não é a frase que tenta forçosamente engrandecer um personagem que não fez nada de realmente inteligente ou virtuoso. Neste caso, a sacada e a ação já são admiráveis em si, a frase é só a cereja do bolo.

Há 3 tendências comuns que pra mim caracterizam esses filmes de ação que são mais guiados por testosterona do que pelo cérebro:

- Luta e violência gratuitas, divorciadas de lógica, de valores morais, ideais positivos e de propósitos narrativos: os personagens estão o tempo todo entrando em brigas, batalhas, tiroteios (frequentemente motivados por ódio, vingança, por um senso distorcido de honra) e o espectador mal sabe dizer qual a necessidade do conflito, por que um lado é do bem e o outro é do mal (não é incomum ambos os lados serem corruptos).

- Delírios de grandeza: a ação e o senso de invencibilidade do personagem são divorciados de realismo, de uma caracterização convincente. O filme espera que você simplesmente aceite o personagem como o "melhor de todos os tempos", faça coisas impossivelmente exageradas, sem explicar o porquê, sem dar um contexto minimamente plausível para suas habilidades.

- Autoestima e masculinidade viram sinônimos — o filme se passa num mundo dominado por homens. Voltando aos filmes do James Cameron, quando a Sigourney Weaver diz "Get away from her, you bitch" em Aliens, Cameron a coloca na mesma posição do Schwarzenegger em T2, e a cena é igualmente convincente, o que prova que ele consegue pensar em Autoestima como um valor abstrato, aberto a todos os seres humanos. Já nesses filmes movidos a testosterona, feminilidade e força/habilidade são coisas incompatíveis. As mulheres tendem a ser passivas, indefesas, viram objetos sexuais vazios, tipo as que ficam rebolando nos rachas de Velozes e Furiosos (ou então viram homens praticamente, como nos filmes modernos que querem ser ao mesmo tempo macho-filmes e "inclusivos").

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Exemplos de filmes guiados mais por Testosterona:

Harakiri (1962) / 007 - A Serviço Secreto de Sua Majestade (1969) / Meu Ódio Será Sua Herança (1969) / Operação Dragão (1973) / Josey Wales, o Fora da Lei (1976) / Matador de Aluguel (1989) / Os Bons Companheiros (1990) / Velozes e Furiosos (2001) / 300 (2006) / Os Mercenários (2010) / John Wick (2014) / O Protetor (2014) / Resgate (2020) / RRR: Revolta, Rebelião, Revolução (2022)

Exemplos de filmes com testosterona porém guiados mais por Autoestima e valores Idealistas:

Rastros de Ódio (1956) / Spartacus (1960) / Yojimbo, o Guarda-Costas (1961) / Os Caçadores da Arca Perdida (1981) / O Exterminador do Futuro (1984) / Coração Valente (1995) / O Resgate do Soldado Ryan (1998) / Gladiador (2000) / Gran Torino (2008) / 007 - Operação Skyfall (2012) / Creed: Nascido para Lutar (2015) / Top Gun: Maverick (2022)

domingo, 24 de março de 2024

Março 2024 - outros filmes vistos

O Problema dos 3 Corpos (3 Body Problem / 2024)

Continuo com meu hábito de tentar assistir pelo menos aos pilotos das séries em alta e ver se alguma escapa dos padrões que listei na postagem 5 motivos pelos quais não gosto de Séries de TV, mas mesmo com as expectativas baixas, elas quase sempre conseguem me surpreender pra pior. Tentei recentemente ver Shōgun, Mestres do Ar, True Detective: Night Country, e achei todas fracas demais pra continuar — mas O Problema dos 3 Corpos foi particularmente irritante pois a premissa inicial conseguiu me prender por 1 episódio e meio (em geral só aguento uns 30 minutos, daí sofro pouco). A cena de abertura se passa na China nos anos 60 e mostra um cientista sendo torturado por comunistas, mas mantendo sua integridade e sua defesa da ciência. Achei interessante, mas algo já me cheirava mal — seria possível uma série mainstream da Netflix ser explicitamente anti-comunista e pró-razão? Resolvi continuar vendo pra entender como eles iriam se safar com esse conteúdo, mas ao ver o nome do Rian Johnson nos créditos iniciais como produtor executivo, tive certeza que essa cena inicial se provaria apenas uma pegadinha ou pista falsa. E foi exatamente isso — o que seguiu foi o típico besteirol pseudocientífico sem pé nem cabeça que caracteriza a maioria das ficções modernas. A trama fica lançando enigmas intrigantes pro espectador e adiando as respostas para o futuro, enquanto enche linguiça pra segurar o público e aumentar as horas visualizadas na plataforma, o que torna a experiência altamente estressante. E os tais enigmas são tão nonsense que você fica cada vez mais certo que a explicação terá que envolver algum tipo de subjetivismo aleatório estilo Christopher Nolan. Quanto à "crítica" ao comunismo, já no primeiro episódio a série consegue fazer a mágica de transformar os comunistas em capitalistas gananciosos que só pensam em progresso, desenvolvimento tecnológico, e cujo maior crime é a destruição do meio ambiente (!!). Os heróis (que supostamente são antirrevolucionários e inimigos do regime) são presos pelos comunistas quando são pegos lendo o livro Primavera Silenciosa (que lançou o movimento ambientalista nos anos 60)! Dizem que revelações surpreendentes vão ocorrer nos próximos episódios, mas ficar esperando algo inteligente e plausível da série após esse início, seria se rebaixar ao mesmo nível de insanidade.


Uma Vida - A História de Nicholas Winton (One Life / 2023 / James Hawes)

Versão mais simplória de A Lista de Schindler. A história é contada com clareza, a produção é competente, Anthony Hopkins está bem como de costume, mas nada se destaca muito no nível da execução. O foco do filme está mesmo no conteúdo, no relato histórico. E a história até que é interessante, mas não acho que atinge todo seu potencial. O desejo do filme de retratar Nicholas Winton como uma espécie de santo altruísta, que só deseja ajudar os outros sem nunca demonstrar um pingo de auto-interesse, faz o personagem parecer um tanto distante, unidimensional (filmes que querem realmente acreditar no altruísmo do herói acabam sempre com caracterizações superficiais — e não projetam real Benevolência). E a história também é vazia de conflitos morais, de evolução de caráter, surpresa, pois Nicholas já começa como um altruísta totalmente dedicado, que nunca teve outros planos pra sua vida, que sempre se opôs aos nazistas e nunca duvidou das atrocidades que eles estavam cometendo, então seus conflitos ao longo da narrativa são todos externos, práticos — lidar com a falta de recursos, com burocratas que o impedem de colocar em prática toda sua virtude etc. Ainda assim, acho que o filme será satisfatório pra quem acha comovente a história real. A cena climática no programa de TV quase conseguiu me arrancar uma lágrima, mas que falta faz um John Williams nessas horas.

Satisfação: 6 (Idealismo Imperfeito)

sexta-feira, 22 de março de 2024

Matador de Aluguel

O original de 1989 é o tipo de entretenimento burro, porém divertido, que as pessoas colocam na categoria de guilty pleasure. O que me faz simpatizar com o antigo é justamente sua ingenuidade, que sem querer acaba expondo a masculinidade primitiva da história (as racionalizações ligadas ao instinto de luta, ao sentimento de invencibilidade) como algo de fato infantil, não sofisticado, digno de riso (meu problema com John Wick / Equalizer é que eles conseguem em parte camuflar isso dando um verniz sério pra produção). O filme tinha a inocência de um garoto de 8 anos expressando esses delírios de grandeza ao brincar com bonequinhos de ação. Mas uma sociedade cínica e excessivamente autoconsciente como a atual não permitiria mais esse tipo de inocência. O filme, portanto, precisa anunciar que é "adulto" e que não se leva a sério. Há quem diga que o filme de 89 não se levava a sério, mas Patrick Swayze interpretava James Dalton com a mesma seriedade de um herói do John Wayne ou do Bruce Lee. O que fazia o filme parecer não-sério eram só os exageros da ação, que não tinham uma intenção cômica explícita, e eram percebidos apenas pelo espectador com senso crítico. Mas no remake, o James Dalton do Jake Gyllenhaal se mostra totalmente consciente do fato que ele está dentro de um guilty pleasure, e precisa ficar fazendo comentários autorreferenciais, soltando piadas incongruentes no meio da ação pra não correr o risco do espectador achar que o filme é de fato imaturo. O problema é que em vez de um garoto de 8 anos, o filme agora é como um adulto infantilizado brincando com bonecos de ação, mas ao mesmo tempo tirando sarro do jeito que garotos brincam. Enquanto o espírito genuinamente imaturo do original ainda tinha certo charme, produzia uma forma honesta de entretenimento (o filme pelo menos estava tentando simular virtudes como coragem, força, ainda que de forma desajeitada), a imaturidade autoconsciente do remake já não tem a menor graça. O que o remake realmente está tentando simular não é mais coragem, força, mas a ironia do Idealismo Corrompido — a atitude de autoparódia que, quando acompanhada de certa inteligência, pode resultar em filmes populares como Deadpool ou Kill Bill. Só que Matador de Aluguel (2024) é tolo na própria tentativa de simular essa ironia. As tentativas de piada, os one-liners péssimos e a atuação risível do Conor McGregor devem tornar o filme um forte concorrente pra Madame Teia no próximo Framboesa de Ouro. No máximo, Matador de Aluguel (2024) poderá funcionar como uma nova espécie de guilty-pleasure pro espectador moderno — não o filme que diverte porque queria ser Idealista e falhou de forma cômica no processo, mas o filme que queria ser Idealista Corrompido e foi igualmente malsucedido.

Road House / 2024 / Doug Liman

Satisfação: 3 (Idealismo Corrompido)

segunda-feira, 11 de março de 2024

Recap: Oscar 2024

Não retiro nada do que disse na minha Prévia do Oscar. Mas levando tudo em conta — os indicados, o que já era esperado, e os resultados finais — acho que o Oscar 2024 foi um passo significativo em direção à sanidade. Tenho minhas críticas a Oppenheimer, mas não fico indignado dele ter levado os prêmios principais, primeiro por ser aquele filme evento do ano que é sucesso de público e crítica, e que há muito tempo o Oscar não reconhece. Mas também por ser um dos trabalhos mais maduros do Nolan. Ele é o cineasta mais bem-sucedido e influente das últimas 2 décadas e provavelmente acabaria ganhando um Oscar cedo ou tarde — acho mais saudável que tenha sido por Oppenheimer do que por um filme como Dunkirk, por exemplo (achei um pouco forçado colocar o Spielberg pra entregar a estatueta, como quem passa a tocha, mas é o que "temos pra hoje" no cinema, em termos de um diretor extremamente popular que se diz também um guardião das boas tradições cinematográficas).

Emma Stone ter ganhado em vez da Lily Gladstone também achei um bom sinal — se tanto a Lily quanto a Da'Vine tivessem ganhado, eu concluiria que a questão da representatividade ainda é um fator indiscutível na cabeça dos votantes. Mas o prêmio ter ido pra Emma sugere um voto meritocrático que pode refletir um enfraquecimento deste fator. Os 2 prêmios pra roteiro achei totalmente justos. Os prêmios pra Pobres Criaturas nas categorias de arte também. Vejo o som de Zona de Interesse muito mais como um gimmick e também como uma decisão criativa já do roteiro, não como um grande trabalho técnico necessariamente, mas tanto essa vitória quanto a de Godzilla Minus One (pra Efeitos Visuais, que achei ótima) são positivas no sentido de mostrarem a Academia querendo valorizar o impacto dramático da técnica, não apenas o filme mais caro e tecnológico. Em um ano em que tantos blockbusters caros fracassaram por falta de visão artística, e a Inteligência Artificial mostrou que em breve nada estará fora do alcance do ponto de vista técnico, acho que esse é um movimento natural e positivo. Eu não gostei nada de O Menino e a Garça, mas como as outras animações não eram muito melhores, o prêmio pra mim não foi a coisa mais revoltante da noite (até porque nessa categoria acho que leva-se em conta também a parte técnica da animação, e nesse ponto o filme do Miyazaki é respeitável). Wes Anderson ganhar por Melhor Curta achei merecido — assim como no caso do Nolan, Wes é um diretor que se tivesse ganhado o Oscar por um longa anterior, eu teria achado forçado. Mas aqui ele acaba vencendo por um trabalho em que ele mostra hábitos melhores como artista.

Eu teria dado Filme Internacional pra A Sociedade da Neve, mas a categoria de filme estrangeiro, assim como as de Documentário e Curtas, sempre foram os prêmios Não Idealistas do Oscar, o momento em que a Academia usa pra se mostrar "altruísta", politicamente engajada etc. Não acho merecido, mas pelo menos é algo dentro da normalidade. E esse senso de normalidade é o que fazia tempo que eu não se sentia vendo a premiação, que nos últimos anos parecia sempre fazer um esforço extra pra ir na direção do Anti-Idealismo (vamos ver se essa boa vontade dura muito tempo com o possível retorno de Trump à presidência).

A cerimônia em si também achei melhor que de costume — fiquei de mal humor 90% do tempo mas não por culpa do evento, e sim da transmissão da TNT, que cortou vários minutos da transmissão original, ou por puro erro/incompetência, ou por querer dar mais tempo de tela pra Ana Furtado e pras péssimas comentaristas.

Mas achei os discursos dos vencedores menos cansativos, com mensagens mais positivas, houve menos momentos desconfortáveis de pessoas sendo cortadas pela música, os comentários políticos também não foram tão indigestos, pois Hollywood por sorte parece estar do lado certo nos conflitos do momento (Rússia, Oriente Médio). O Jimmy Kimmel eu nunca gostei muito como host. Ele teve alguns deslizes (como a piada infeliz com o Robert Downey Jr.) e não teve grandes acertos pra compensar. Fica alguém que atrapalha pouco, mas que também não eleva o padrão do evento. Outros apresentadores, no entanto, renderam bons momentos de humor. Curti a reunião de Schwarzenegger e Danny DeVito (e o link perfeito feito com Michael Keaton); o John Cena nu no palco apresentando o prêmio pra Melhor Figurino; a Rita Moreno usando "America" de West Side Story pra iniciar o discurso pra America Ferrera — pequenos detalhes assim deram a ideia de uma festa pensada com mais carinho e cuidado. "I'm Just Ken" foi um número divertido (a canção acho cínica e não particularmente boa, mas era a oportunidade ideal pra se criar o momento espetacular na noite, e a execução surpreendeu). Só o Al Pacino bêbado no final anunciando Melhor Filme que achei meio caótico... Acho que nem o Warren Beatty e a Faye Dunaway aparecendo ali de novo teriam conseguido deixar a leitura do envelope mais angustiante.

sexta-feira, 8 de março de 2024

Garra de Ferro

Este é um filme que se sustenta totalmente no fato dele ter sido baseado em uma história real. Se fosse uma história inventada por um roteirista, todo mundo sairia da sala se perguntando qual o sentido de assistir a esses eventos. Zac Efron interpreta o mais velho de 4 irmãos numa família com um longo histórico na luta livre. O pai se relaciona com os filhos como um coach durão, e seu sonho é trazer pra família o primeiro título de campeão mundial. Mas não se trata de um filme de esporte desses onde há um campeonato específico, um desafio iminente que dê um foco pra trama. É uma narrativa semi-Naturalista onde o protagonista é bastante passivo a maior parte do tempo. Vemos ele passando por uma série de conflitos, frustrações, iniciando um romance, e até a 1h20 de filme você não sabe exatamente pra onde tudo está caminhando — se será uma história de sucesso, um filme trágico (especialmente se você não conhece a história dos Von Erich e não leu a sinopse). Só quando começa a acontecer uma série de acidentes na família que você entende o propósito do longa: a família real foi marcada por tragédias, e é por isso que fizeram um filme sobre ela. O problema é que não há um significado maior por trás desses acidentes — ou pelo menos o filme não consegue encontrar o significado. Se tudo fosse consequência da ambição desenfreada do pai, da educação que ele deu aos filhos, poderíamos ter uma história satisfatória estilo Eu, Tonya. Mas aqui, parece uma enorme coincidência tudo o que aconteceu. Não há lição a ser tirada.

O tom do filme é compatível com o tipo de história que faz uma crítica ao "sonho americano", mas as circunstâncias dos acidentes são tão aleatórias que nem mesmo a América serve como vilã. Tudo acaba se resumindo à "maldição dos Von Erich", à ideia de uma família extremamente azarada — um caso interessante pra uma matéria de jornal, mas nem tanto pra um filme, que precisaria de algo mais, de uma resposta pro "e daí?" que nos perguntamos inevitavelmente no final. (Se a história de O Resgate do Soldado Ryan fosse só sobre uma mãe que perde 3 dos 4 filhos numa guerra, e o filme acabasse na cena da mãe na varanda recebendo a notícia, a tragédia em si ainda não geraria um bom filme; é o que é feito a partir da tragédia que traz significado pra história.)

O filme não é desagradável de assistir pois a dinâmica entre os irmãos é atraente, há fragmentos de uma história de ascensão profissional no meio de tudo, e a luta livre não tem o aspecto violento que torna filmes sobre boxe às vezes indigestos. Zac Efron vem sendo elogiado e realmente está convincente nesse modo bronco, mas não acho que ele demonstre mais talento aqui do que ele demonstrou em High School Musical, por exemplo a questão é que pra muita gente, atores como ele só parecem realmente esforçados quando sacrificam a beleza em nome do papel.

The Iron Claw / 2023 / Sean Durkin

Satisfação: 6

Categoria: Idealismo Corrompido

Filmes Parecidos:  Foxcatcher: Uma História que Chocou o Mundo (2014) / Cassandro (2023) / O Lutador (2008) / Eu, Tonya (2017)