terça-feira, 31 de outubro de 2017

Stranger Things 2

Isso não é uma crítica completa à segunda temporada, apenas uma observação que acho importante fazer. A série obviamente se apresenta como uma homenagem a filmes dos anos 80, e se inspira particularmente em produções de Steven Spielberg e James Cameron como E.T. - O Extraterrestre, Aliens - O Resgate, Poltergeist - O Fenômeno, Os Goonies, O Exterminador do Futuro, Contatos Imediatos do Terceiro Grau, etc. Como já disse aqui várias vezes, Steven Spielberg e James Cameron são 2 dos meus cineastas favoritos e a maioria dos filmes citados estão no meu "top 100". E como um fã e estudante desse estilo de cinema, me sinto na obrigação de vir aqui lembrá-los que Stranger Things não tem nada a ver com esses filmes.

Stranger Things é uma "homenagem" aos filmes dos anos 80 na mesma medida em que La La Land é uma "homenagem" aos musicais clássicos. Nos 2 casos as produções soam inautênticas, pois não só não têm o mesmo compromisso com qualidade técnica, como não têm o mesmo espírito e os mesmos valores dos filmes que tentam homenagear. Elas fingem que estão resgatando o espírito do passado (um período considerado mais feliz, divertido e inocente do que o atual - e que justamente por isso provoca nostalgia nas pessoas), mas na prática fazem isso apenas no nível da superfície: através do visual, do estilo da trilha sonora, dos figurinos, de referências explícitas a outros filmes, etc. Naquilo que realmente importa, nos valores essenciais transmitidos através da história, dos personagens, são produtos totalmente "2017", que estão em plena harmonia com o espírito da atualidade - que é bem diferente do da época e em muitos aspectos é hostil ao espírito da época.

Portanto não - Stranger Things não é um bom exemplo do tipo de entretenimento que eu costumo defender aqui (eu tinha gostado até da primeira temporada, apesar de algumas ressalvas, mas agora na segunda vendo os defeitos da série de forma mais exagerada, já não fico tão entusiasmado em recomendá-la).

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Thor: Ragnarok

NOTAS DA SESSÃO:

- Fraca a sequência inicial onde o Thor enfrenta aquele demônio gigante (Surtur). Obviamente o filme está pesando a mão no humor pra imitar Guardiões da Galáxia, mas isso acaba diminuindo a estatura do herói (e do vilão), e deixando tudo com cara de uma brincadeira inconsequente. Não chega a ser um humor mal intencionado como o de Guardiões, feito intencionalmente pra destruir o Idealismo da história (o filme está apenas seguindo tendências) mas ainda assim passa do ponto.

- O filme tem um desprezo completo pela realidade (algo cada vez mais comum nos filmes comerciais atuais) que nos impede de acreditar em qualquer coisa que esteja acontecendo (na verdade o público atual não precisa de realidade pra sentir qualquer coisa, mas isso é assunto pra uma outra postagem). Em vez de tentar criar um universo crível, consistente, fazer a gente acreditar nesse mundo e nesses personagens, o filme parece querer enfatizar o fato de que é tudo uma ilusão. Tudo pode acontecer - portais estão constantemente abrindo e jogando os personagens de um lugar pro outro, personagens às vezes são sólidos, às vezes são hologramas, às vezes são outros personagens disfarçados (Loki pode se transformar em quem quiser a qualquer momento), os mortos podem ressuscitar, o Anthony Hopkins uma hora evapora e não sabemos imediatamente se ele morreu, se foi pra outra dimensão, sem falar na ação do filme: a força dos personagens é sempre ilimitada, aleatória, não temos a menor noção do que eles podem ou não fazer, Thor pode receber golpes inimagináveis sem sofrer 1 arranhão, mas ao mesmo tempo pode ser derrotado por um pequeno aparelho que dá choque, etc.

- Cate Blanchett está divertida de vilã, mas é um personagem extremamente caricato - até a Madrasta Má tinha uma motivação mais elaborada que essa.

- No meio da luta com a Cate Blanchett, o Thor acidentalmente cai pra fora do portal e vai parar num outro planeta, onde ele fica praticamente o resto do filme inteiro. Qual a relevância dessa reviravolta pra trama? É algo totalmente acidental, desnecessário, que só serve pra encher linguiça até o Thor conseguir escapar de lá, e se reencontrar com a Cate Blanchett no final pra mais uma batalha. Tudo que acontece aí parece desimportante: os conflitos com o Jeff Goldblum ou com o Loki, a luta de gladiador contra o Hulk, a amizade com a Valquíria, etc. Não são peças formando um quebra-cabeça maior, desenvolvendo um tema central, e sim eventos jogados pra distrair o espectador até o fim. É a velha ideia de um time de heróis sendo formado pra uma batalha final. Mas não fica claro que o Thor precisa dessas pessoas de fato pra derrotar a vilã (3 poderes incalculáveis somados são mais fortes do que 1 poder incalculável?!). No fim ele sempre tem uma carta na manga que resolve o problema. E de qualquer forma, uma "batalha final" não é algo interessante o bastante pra sustentar o interesse da plateia. O herói não está buscando nada de positivo, atraente, só quer impedir a vilã de agir.

- Como previsto, o final é apenas mais uma luta absurda sem nenhuma noção de realismo, onde a vilã é derrotada por uma "carta na manga" que não causa grande surpresa ou admiração pelo protagonista.

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CONCLUSÃO: Tem um clima divertido, Chris Hemsworth é sempre simpático, mas é extremamente fútil como cinema e entretenimento.

Thor: Ragnarok / EUA / 2017 / Taika Waititi

FILMES PARECIDOS: Valerian e a Cidade dos Mil Planetas (2017) / Vingadores: Era de Ultron (2015) / Guardiões da Galáxia (2014)

NOTA: 4.0

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

A Guerra dos Sexos

NOTAS DA SESSÃO:

- O filme não se esforça pra fazer a gente simpatizar pela causa da Billie Jean. Não diz se ela está com problemas financeiros, não ilustra se ela atrai um público grande pros jogos de tênis (e por isso mereceria um salário maior), não mostra ela se esforçando pra receber mais, lutando honestamente, com humildade, e mesmo assim sendo recusada. Da maneira como é mostrado, é apenas uma feminista que de um dia pro outro exige um salário igual ao dos homens, simplesmente porque ela resolveu que sim. Não é uma boa maneira de fazer a gente se importar pela personagem.

- O romance é introduzido de maneira igualmente superficial, pouco dramática. Não sabemos nada sobre a vida pessoal/íntima da Billie... Que tipo de coisa ela valoriza, se ela deseja viver um grande romance ou não, se ela tem alguma insegurança, algum conflito pessoal... O filme parece achar que o simples fato dele ter uma agenda política "progressista" já é o bastante pra fazer o espectador se envolver pela história: como Billie Jean é feminista, lésbica, todos na plateia devem automaticamente torcer por ela, independentemente da história ser bem contada.

- Toda a premissa do filme é fraca, sem muito drama, energia. O vilão (Bill Pullman) é um cara meio idiota, mas não é tão odioso assim a ponto de gerar um conflito sério e pessoal entre os dois, que sustente o filme inteiro. Bobby Riggs (Steve Carell), que seria um segundo "vilão", também não tem um conflito significativo com a protagonista. Toda essa ideia de uma partida de tênis entre os 2 pra provar que as mulheres são equivalentes aos homens é uma tolice. Seria apenas um evento simbólico, midiático, mas que não provaria nada na prática. Não provaria nem que mulheres e homens são igualmente bons no esporte, e nem que Billie merece um salário igual ao dos homens simplesmente por ser igualmente habilidosa, independentemente das forças do mercado.

- O filme fica tentando criar um clima épico em cima da partida entre Billie e Bobby, mas simplesmente não existe esse drama todo. Billie já começou o filme como a melhor jogadora do mundo. Não é como nesses filmes de esporte onde o protagonista começa totalmente despreparado, vai crescendo ao longo do filme, até um partida final desafiadora que irá decidir sua carreira. A carreira da Billie não está em jogo aqui. E Bobby é um cara muito mais velho que ela. Ela não está jogando contra alguém que pareça de fato ameaçador. Nem mesmo o movimento feminista está em jogo nessa partida. Mesmo que ela perca, a luta das mulheres não irá parar. É apenas uma brincadeirinha boba sem grandes consequências pra vida pessoal de Billie.

- O romance lésbico entre Billie e Marilyn acaba tendo mais potencial dramático do que a partida de tênis em si. Mas é uma trama que acaba não sendo muito bem explorada (o marido aceita tudo numa boa, Billie não chega a sofrer grandes consequências por causa do romance, não tem que tomar nenhuma decisão até o fim do filme, etc).

- Um dos motivos da história ser fraca é que toda essa rivalidade entre homens e mulheres no fundo é meio boba. Os homens em geral (mesmo os machistas) não odeiam as mulheres (todos têm mães, esposas, filhas, etc). Não é como num filme sobre o racismo, por exemplo, onde realmente pode existir um clima agressivo entre os 2 lados, um conflito moral sério. Aqui, se as mulheres vencerem o jogo, nenhum homem vai ficar de fato revoltado, ofendido. Vai todo mundo se divertir e no dia seguinte continuarão todos convivendo sem problemas.

- A partida final de tênis é filmada de maneira pouco inventiva em termos de fotografia, edição - mas funciona, pois acompanhamos o jogo como se fosse uma partida real transmitida pela TV, onde podemos acompanhar cada jogada com clareza - há certo realismo, temos a impressão que os atores estão realmente ali na quadra em uma partida, etc.

- SPOILER: Como era de se esperar, o final é meio previsível, pouco emocionante. E é meio anticlimático ela vencer a partida, daí ter aquela pausa onde ela vai chorar no banheiro, depois ela voltar pra quadra, comemorar de novo, e daí sim o filme acabar sem que nada novo tenha acontecido - não é resolvido o conflito romântico, não há um encontro final de Billie com os "vilões" (a Margaret, o Bill Pullman, etc).

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CONCLUSÃO: Realizado com competência, com bons atores, mas os conflitos são fracos demais pra tornarem a história interessante.

Battle of the Sexes / Reino Unido, EUA / 2017 / Jonathan Dayton, Valerie Faris

FILMES PARECIDOS: Estrelas Além do Tempo (2016) / Carol (2015) / Foxcatcher: Uma História que Chocou o Mundo (2014) / O Homem que Mudou o Jogo (2011)

NOTA: 6.0

domingo, 22 de outubro de 2017

Doentes de Amor

NOTAS DA SESSÃO:

- Kumail não é um protagonista muito atraente. O personagem não tem talento como comediante, não é muito engraçado (os coadjuvantes que fazem stand-up com ele têm momentos bem melhores), nem bonito como par romântico, nem especialmente inteligente. No máximo fofo e realista (o que não é uma grande virtude).

- O filme tem certa sensibilidade ao retratar pessoas, relacionamentos, mas ainda dentro da premissa Naturalista de que realismo é mais importante que talento, imaginação, diversão, etc. Pegue por exemplo o início do romance entre Kumail e Emily: ele vai mostrar o filme favorito dele pra ela, e ela começa a achar um tédio, então eles desistem e resolvem fazer sexo. Certamente é algo que acontece na vida real, mas não é algo que torna o romance mais atraente pro espectador. Pelo contrário - sugere que eles não são tão compatíveis quanto gostariam, que ela não respeita o gosto dele o bastante nem pra assistir o filme até o final... E mesmo assim a relação segue em frente, pois "nada é perfeito", "a vida requer sacrifícios", etc.

- Constrangedor o show do Kumail sobre a vida dele no Paquistão! E é horrível de propósito - o filme parece achar legal o fato do protagonista ser um completo loser, um artista sem a menor vocação pro que está fazendo. Se o show fosse de um personagem coadjuvante sem importância, seria uma cena divertida, mas não há graça em ver o protagonista se humilhando dessa forma. É outro desses toques realistas que o filme acha que o tornam mais "maduro".

- De mau gosto a cena em que a Emily precisa ir ao banheiro no meio da noite. É mais realismo desnecessário que só serve pra desglamourizar o romance. Referências a fezes são aceitáveis em comédias escatológicas, em certos filmes cult feitos para chocar... Mas não num filme onde devemos admirar os personagens. Eu já tive um mau pressentimento em relação a esse filme desde que li o título (jamais colocaria "Sick" num título; falar de doença num espaço tão nobre, ainda mais num filme que pretende falar de amor).

- A história da doença de Emily surge apenas em 1 hora de filme, e é uma reviravolta desnecessária que não ajuda a desenvolver em nada o conflito central do filme (as diferenças pessoais e culturais entre o casal). Não é como em Enquanto Você Dormia, onde o fato do cara estar em coma era um elemento indispensável pra trama. A partir desse ponto, o filme abandona a história central do romance e foca na relação entre Kumail e os pais da Emily, o que não desenvolve em nada a história (há várias cenas aleatórias, como a briga da Holly Hunter no bar, etc). O conflito principal do filme era o fato do Kumail ser paquistanês e que sua família não permitiria que ele se casasse com Emily, uma americana. Dentro desse contexto, seria muito melhor pra história que o Kumail ficasse internado, forçando a Emily (a americana) a conviver com os pais paquistaneses dele - e aos poucos ir quebrando o preconceito da família. Isso serviria bem à trama. Agora o Kumail conviver com os pais da Emily não ajuda em nada o desenvolvimento da história. Os pais dela não eram um grande obstáculo pro romance, então tanto faz Kumail se tornar amigo deles ou não (pelo menos a Holly Hunter e o Ray Romano são presenças agradáveis no filme).

- O grande problema do filme é que ele é baseado numa história real, e escrito/atuado por pessoas reais que viveram a história. Eles estão partindo do princípio de que, como essa história realmente aconteceu, ela merece ser contada para o público, com todos os detalhes irrelevantes incluídos. Mas o público não está nem aí pra vida pessoal dos cineastas - a não ser que esses eventos sejam lapidados até formarem uma história envolvente e agradável de assistir, o que não é o caso.

- A paquistanesa bonita do casamento arranjado acaba parecendo mais interessante pro Kumail do que a Emily - que nem sabemos se gosta mais dele. Parece um desperdício ele rejeitar essa menina. O romance com a Emily não era tão especial assim pra gente torcer incondicionalmente pelo casal.

- A Emily vai ficar doente o filme inteiro? Qual o propósito dessa doença no filme? Pra que eu quero ficar horas vendo um loser num hospital esperando a "namorada" acordar do coma, pra daí talvez eles darem continuidade a um romance que já era bem meia-boca? Se fosse uma relação única, inesquecível, um casal fascinante, o espectador estaria envolvido, torcendo pro retorno dos dois. Mas não era! Essa sequência do hospital deveria ser uns 10 minutos de filme, uma breve crise no meio da história, e não o filme inteiro praticamente.

- Kumail tem uma série de atitudes tolas que vão tornando o personagem cada vez menos admirável. A forma como ele mente pra própria família, ou então a tolice de tentar impedir a mudança de hospital da Emily, como se ele tivesse direito de interferir na decisão dos pais dela. Ou então quando ele fica histérico no drive-thru e maltrata o funcionário do restaurante. Ou cena em que ele dá vexame no show de stand-up - ele destrói toda a diversão da plateia do show pra falar de seus dramas pessoais. Kumail parece achar um mérito entediar a plateia pra enfiar suas histórias pessoais goela dos outros abaixo... Lembra do "one man show" dele sobre sua vida no Paquistão? Bem, pense que o cara que criou aquele show horrível, não é apenas Kumail o personagem do filme, mas também Kumail, o ator/produtor/roteirista desse filme Doentes de Amor que estamos vendo agora!

- Quando Emily acorda do coma, ela não tem nenhuma vontade de ver Kumail ou de voltar a se relacionar com ele... Mas o filme acha que como Kumail se sacrificou tanto por ela enquanto ela estava no hospital, foi tão atencioso, que agora ele "merece" tê-la de volta, que a plateia estará automaticamente torcendo pelos dois. Eu não estou!

- Kumail mostra pra Emily tudo que ele fez enquanto ela estava em coma na tentativa de ganhá-la de volta (os cartões de visitante do hospital, etc). É uma atitude medíocre. Ele está dizendo "veja como eu gosto de você, como isso prova que eu me esforcei". Ele quer que Emily fique com ele não por ele ser um homem interessante, admirável, por ter um ótimo caráter, por ser honesto, por ela estar de fato interessada - mas simplesmente por ele desejá-la intensamente. Ele quer que ela se sacrifique, faça algo que não quer apenas em nome do sentimento dele - fique com ele por um ato de caridade, não por uma paixão pessoal autêntica.

- SPOILER: O filme tem uma atitude em relação ao amor que é anti-autoestima, anti-felicidade, baseada em altruísmo. Eles eram um casal comum, sem grandes compatibilidades, sem grande paixão... Daí, a menina ficou em coma, e por algum motivo, o fato dela ter adoecido fez com que Kumail se apaixonasse ainda mais por ela. Não virtudes novas que ele descobriu, mas o fato em si dela ter sofrido no hospital. Daí, depois que Emily acorda do coma, ela não está nem um pouco interessada em Kumail. Só que daí ela entra no YouTube e vê a apresentação horrível que ele fez no show de stand-up e que arruinou sua carreira... Agora, sensibilizada pela fraqueza, pela derrota e humilhação dele (não por novas virtudes que ela tenha descoberto), ela se apaixona de volta por Kumail e corre atrás dele!

- SPOILER: O reencontro final (quando Emily aparece no show dele em Nova York) soa falso. O filme todo era realista, enquanto isso já parece uma cena tirada de uma comédia romântica mais leve, escapista. Não combina com o relacionamento que tínhamos visto antes. A mudança de atitude dela foi muito rápida, sem fundamento (apenas viu um vídeo no YouTube). E eu como espectador não me emocionei, pois não tinha grandes motivos pra torcer por esse retorno.

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CONCLUSÃO: Tem bons atores e certa sensibilidade em termos de caracterizações, mas é uma história mal estruturada, mal desenvolvida, sobre um romance pouco empolgante.

The Big Sick / EUA / 2017 / Michael Showalter

FILMES PARECIDOS: O Bebê de Briget Jones (2016) / Ligeiramente Grávidos (2007) / Casamento Grego (2002)

NOTA: 4.0

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Os Meyerowitz: Família Não Se Escolhe

NOTAS DA SESSÃO:

- A riqueza dos personagens e dos diálogos nos filmes do Noah Baumbach é sempre algo impressionante. Em 10 minutos ele já extrai mais conteúdo dos personagens do que a maioria dos filmes consegue em 2 horas. Apesar de não haver uma narrativa envolvente, o filme tem um ritmo ágil que o mantém interessante... Há sempre algo criativo e inesperado acontecendo na tela: detalhes como as refeições horríveis da Emma Thompson, a entrelinha constante de que o Ben Stiller é o filho favorito do Dustin Hoffman, a música que o Adam Sandler toca no piano com a filha que eles compuseram quando ela era pequena... É tudo extremamente autêntico e revela a capacidade de observação admirável do diretor. Ele parece realmente ter nascido numa família de artistas como essa, e fala como alguém relatando algo em primeira mão.

- Hilária a cena em que eles vão assistir ao primeiro "filme" da filha do Adam Sandler. E depois a participação da Sigourney Weaver como ela mesma. O filme é sempre inesperado e original. E o elenco é impressionante.

- Costumo comparar Baumbach ao Woody Allen, mas apenas por eles fazerem filmes sobre pessoas, em geral artistas, intelectuais, e terem esse dom pra diálogo e caracterização. O que me impede de gostar mais do Baumbach é que há uma frieza em seus filmes que eu não vejo nos filmes de Allen. Ele não parece ter empatia real por nenhum dos personagens. Eles estão ali apenas ilustrar o cinismo que o cineasta sente em relação à humanidade, e pra dizer as frases inteligentes que ele escreveu no roteiro. Os diálogos às vezes são tão rápidos que mal conseguimos acompanhar... Uma pessoa está sempre interrompendo a outra, mudando o assunto do nada, e isso acontece o tempo todo... É algo que chama atenção pro fato de que o filme é "bem escrito", mas tira todo o nosso envolvimento do conteúdo da conversa.

- Até quando o pai está em coma no hospital o filme insiste nesses diálogos rápidos cômicos, tentando gerar humor num momento triste, onde ninguém deveria estar tão agitado assim.

- Os personagens são todos meio losers, deprimidos, e os relacionamentos entre eles não são nada atraentes - não sentimos uma ligação emocional positiva entre ninguém (no máximo entre o Adam Sandler e a filha). Você não gostaria estar na pele de nenhuma dessas pessoas, e essa não é uma família da qual você gostaria de fazer parte. O Woody Allen conseguia em suas comédias falar de depressão, vazio existencial, divórcio, fracasso profissional, de uma forma que você ficava encantado pelos personagens, gostaria de fazer parte daquele mundo. Era tudo romantizado, divertido, os personagens eram admiráveis, a cidade era glamourosa... Na minha postagem O Que Nos Atrai à Arte? eu discuto como os bons filmes nos transportam pra um universo benevolente, com significado, mesmo quando discutem temas graves. Aqui, o que Baumbach consegue é o oposto - é revelar o vazio e a frieza por trás das relações, das carreiras dos personagens, da vida em si, etc. E o que torna tudo ainda mais deprimente é o fato de Baumbach achar que está fazendo uma comédia, divertindo o espectador. Pegue a cena da briga entre os irmãos do lado de fora do hospital... Você tem Ben Stiller, Adam Sandler se estapeando em público, numa óbvia tentativa de criar um humor mais pastelão, mas não há graça na cena, pois não se trata de uma briga superficial entre 2 pessoas que no fundo se gostam, algo digno de riso como nas comédias comuns, e sim de um desentendimento profundo entre irmãos, uma discussão pesada que impede qualquer leveza no momento, ainda mais considerando o contexto do pai morrendo no hospital.

- O filme acaba abruptamente no meio de uma cena meio nada a ver, enfatizando o desprezo de Baumbach por ordem, conclusões, sentido, etc.

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CONCLUSÃO: Extremamente rico em personagens, diálogos, mas frio e deprimente demais pra se portar como uma comédia.

The Meyerowitz Stories (New and Selected) / EUA / 2017 / Noah Baumbach

FILMES PARECIDOS:

NOTA: 6.5

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

A Morte Te Dá Parabéns!


(Esta crítica está no formato de anotações - em vez de uma crítica convencional, os comentários a seguir foram baseados nas notas que fiz durante a sessão - um método que adotei para passar minhas impressões de forma mais objetiva.)

ANOTAÇÕES:

- Demora um pouco até a gente simpatizar pela protagonista. No começo ela fica parecendo extremamente antipática, mas mais pra frente, entendemos que o filme fez isso de propósito, pra que ela pudesse evoluir ao longo da história.

- O filme tem um clima de entretenimento sem culpa incomum pros tempos de hoje - parece algo feito nos anos 90.

- Depois que a Tree já morreu a primeira vez e já percebeu que está vivendo o mesmo dia de novo, é meio forçado ela voltar no lugar em que foi morta, se surpreender com a caixinha de música, etc.

- Meio ridícula a sequência em que ela vai pro quarto do garoto, daí ele transforma o quarto numa espécie de balada, depois o assassino aparece lá dentro, mata ele, mas a Tree não ouve pois a música está alta... É tudo muito absurdo - a gente não sabe mais se o cineasta está se inspirando em Pânico ou em Todo Mundo em Pânico.

- A passagem de tempo com a música Confident (da Demi Lovato) é divertida mas fica parecendo deslocada no filme (Tree andando sem roupa no meio da faculdade, etc). É como se, agora que a Tree está presa num mesmo dia, ela estivesse aprendendo a se soltar, a ter mais confiança... Mas isso não tem nada a ver com o tema do filme. O problema da Tree não era falta de confiança, ou que ela não sabia se divertir - e sim que ela era "confiante demais", a ponto de maltratar os outros, etc.

- O filme é bem intencionado, não tem medo de brincar com a plateia, a atriz tem personalidade... Mas muitas vezes isso vem às custas da qualidade, da lógica da história, etc. Tudo que envolve a trama do assassinato é muito mal feito. Já passou 1 hora de filme e a gente ainda não sabe por que alguém poderia ter qualquer motivo para matá-la. Parece que o diretor no fundo só queria fazer um filme sobre uma garota se divertindo, aprendendo a ser uma pessoa melhor na faculdade... e enfiou uma trama genérica de terror "slasher" no meio só pra apimentar as coisas.

- Como ela conclui que o tal do Joseph Tombs que está sendo mantido no hospital só pode ser o cara que a matou? Ele teria alguma motivação? Ela viu algo no mascarado que associou depois ao Tombs quando o viu na TV? As coisas vão ficando cada vez mais confusas.

- Divertido o dia em que ela resolve ser legal com todo mundo - come comida calórica pra defender a garota do bullying, beija o menino na frente de todos, etc. É nessa zona que o filme funciona melhor.

- Pra acabar com a "maldição" do dia sempre se repetir, a Tree precisa apenas matar o assassino? Ou precisa corrigir seus erros, deixar de ser uma pessoa má com as outros? O filme não explica a relação entre essas 2 coisas - o que foi que provocou esse "loop" no tempo, por que isso aconteceu justamente com a Tree, etc. É simplesmente por ser o aniversário dela? O fato dela fazer aniversário no mesmo dia da mãe tem alguma relevância? O roteirista juntou a ideia do Feitiço do Tempo com o tema da "menina malvada" se redimindo e ainda por cima acrescentou uma trama de serial killer - sem sentar nem meia hora pra tentar amarrar tudo isso de maneira convincente. Uma "mean girl" presa eternamente num mesmo dia da faculdade até aprender a ser uma boa pessoa, isso faz sentido e já seria o bastante pra um filme satisfatório. Mas um assassino mascarado em cima disso tudo é simplesmente confuso.

- SPOILER: A reviravolta final é ridícula (Tree sacar que morreu durante o sono, pois comeu o cupcake pela primeira vez, etc). Não faz o menor sentido essa roommate ser a assassina.

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CONCLUSÃO: O filme diverte e funciona bem quando foca na transformação pessoal da Tree, mas o lado suspense / terror é muito mal desenvolvido.

Happy Death Day / EUA / 2017 / Christopher Landon

FILMES PARECIDOS: Fragmentado (2016) / A Visita (2015) / Premonição (2000) / Eu Sei o Que Vocês Fizeram no Verão Passado (1997) / Pânico (1996)

Mais dicas na minha lista: Os Melhores Filmes de Terror

NOTA: 6.0

sábado, 14 de outubro de 2017

Detroit em Rebelião

NOTAS DA SESSÃO:

- Esse tema da violência policial contra os negros é delicado, mas felizmente o filme deixa claro que não irá simplificar a história de maneira falsa e tendenciosa, só pra provar seu argumento. Ele mostra que tanto do lado dos policiais quanto do lado dos negros existiam pessoas boas e más, o que dá mais credibilidade pra discussão (se o filme tivesse sido feito por um ativista desses fanáticos, ele não conseguiria retratar nenhum dos policiais positivamente).

- O filme gasta um bom tempo pra apresentar cada personagem, criar empatia (ou antipatia), fazer a gente entender o caráter de cada um, tanto do lado da polícia quanto do lado dos suspeitos, antes de juntar todo mundo na sequência central do motel, o que torna tudo mais envolvente, como se estivéssemos realmente participando da situação, entendendo o ponto de vista de todos os envolvidos.

- É interessante que o problema todo só ocorre porque existiam indivíduos malignos dos 2 lados. Primeiro o Carl, que sem motivo algum resolveu atirar pela janela contra a polícia. E depois o Krauss, que estava disposto a revidar com mais violência ainda. Se qualquer um dos 2 fosse menos violento, nada teria acontecido... Mas junta um idiota de um lado contra outro idiota do outro, o sangue começa a jorrar.

- SPOILER: Por que ninguém fala pra polícia que o Carl estava com a arma de brinquedo e atirou pela janela? Ele já está morto! Que mal faria agora dizer a verdade? Fica a impressão que eles só estão nesse interrogatório por que querem. É a única coisa um pouco mal explicada no filme.

- As táticas de interrogatório são assustadoras! A situação é muito tensa e bem feita. Um absurdo a atitude dos policiais. Faz a gente pensar até que ponto é correto maltratar civis pra tentar encontrar o inimigo - algo que muitos filmes de guerra discutiram recentemente (mas diria que são 2 casos diferentes; que numa situação de guerra, onde uma nação inteira está sendo ameaçada, é bem mais justificável do que o que está acontecendo aqui).

- Na minha última crítica (First They Killed My Father) eu disse que não gosto de filmes onde os protagonistas apenas sofrem nas mãos dos inimigos, sem ter muito o que fazer. O que torna esse filme melhor, além do fato dos personagens serem muito mais interessantes e terem personalidade, é que há tensão narrativa: há a possibilidade de fuga, as vítimas muitas vezes tentam reagir, nós queremos saber se eles sairão vivos ou não, se contarão a verdade, se o policial será julgado, etc. E a caracterização do mal é tão boa que acaba gerando certo fascínio, assim como uma Nurse Ratched de Um Estranho no Ninho. O policial Krauss é um dos vilões mais memoráveis dos últimos tempos.

- Incrível toda essa sequência no motel. É quase um mini-filme dentro do filme. Nem sei quanto tempo durou, mas parece que ficamos mais de 1 hora ali sem que a energia diminuísse em nenhum momento.

- Por que o John Boyega mente pra polícia que só chegou no motel depois de tudo? Irrita o fato de que as pessoas inocentes do filme não agem corretamente. Acabam contribuindo pra confusão. Mas pelo menos não vira um daqueles filmes onde os 2 lados do conflito são imorais, e ficamos apenas vendo um monte de gente odiosa brigando entre si. Aqui fica bem claro que Krauss é o grande vilão... As vítimas podem não ser perfeitas, mas são inocentes naquilo que estão sendo acusadas.

- Ótimo o momento em que o Krauss pede pro outro policial mentir no depoimento: "Algo que levou 1 minuto pra acontecer não pode definir sua vida inteira". É exatamente assim que um criminoso pensaria. São por esses detalhes que o personagem se torna convincente e assustador.

- A parte do tribunal também é bem tensa, pois entendemos como os policiais podem sair impunes, apesar de todos os absurdos cometidos. O filme obviamente tem essa intenção de alertar a população pra uma questão social (algo que não costumo elogiar aqui), mas esse filme consegue fazer isso através de uma história bem contada, com bons personagens, suspense, então se torna algo válido - ele não coloca a mensagem social acima da experiência cinematográfica; mas junta as 2 coisas de forma bem feita.

- SPOILER: Até o "racismo inverso" do Larry no final é compreensível. O público da Motown era predominantemente branco, a música representava uma quebra de barreiras raciais, passava um senso de união no país... Dá pra entender por que pro Larry, alguém que acabou de viver uma experiência tão horrível envolvendo racismo, não iria suportar fazer parte dessa gravadora.

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CONCLUSÃO: Filme forte que aborda um tema social complicado, mas o faz de forma inteligente, equilibrada, e sem desprezar a experiência narrativa da plateia.

Detroit / EUA / 2017 / Kathryn Bigelow

FILMES PARECIDOS: Selma: Uma Luta Pela Igualdade (2014) / A Hora Mais Escura (2012) / Dia de Treinamento (2001)

NOTA: 8.0

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

First They Killed My Father

NOTAS DA SESSÃO:

- O filme escolheu essa abordagem de mostrar os horrores do comunismo pelos olhos de uma criança, porém ele não chega a construir uma narrativa interessante do ponto de vista individual da menina (como Spielberg faz em Império do Sol, por exemplo, que é satisfatório apenas como o drama de um garoto, independentemente do conteúdo político). Aqui, dá a impressão que o propósito da Angelina Jolie era puramente político, mas que ela não teve coragem de fazer um filme mais complexo sobre o comunismo, discutindo o tema de forma aberta. Então escolheu esse ponto de vista da menina, assim ela consegue condenar o regime indiretamente, sem ter que dizer nada de maneira mais explícita intelectualmente (conservadores ou libertários nunca saem totalmente do armário em Hollywood).

- Visualmente o filme é bem bonito. Não é uma fotografia muito narrativa / cinematográfica. Mas esteticamente agrada.

- Revoltante os comunistas tirando os bens pessoais das pessoas, forçando elas a sairem da civilização pra morarem no meio do mato, os discursos contra a propriedade privada, contra o individualismo, a proibição de remédios importados, etc. É tão raro no cinema alguém criticar um regime de esquerda (principalmente um "insider" de Hollywood) que o filme merece certo crédito apenas por isso.

- Infelizmente Angelina optou por retratar tudo de maneira meio Naturalista, o que se você for pensar acaba sendo um pouco contraditório, pois Naturalismo é o equivalente à esquerda artisticamente. A garotinha é passiva na história, fica apenas sendo levada de um lugar para o outro. Não tem objetivos, planos, etc. Serve apenas como uma desculpa pro filme nos levar a esse ambiente, e pelas entrelinhas revelar pro espectador os horrores que aconteceram no Camboja.

- Como não há uma boa trama, personagens ativos, a história é um pouco monótona. Apenas uma cena após a outra onde a garotinha testemunha algo horrível sendo cometido pelos comunistas. É um filme sobre pessoas sofrendo nas mãos dos inimigos, sem ter o que fazer, o que cria uma narrativa ruim. Não há ideias cinematográficas, criatividade... O filme poderia muito bem ter sido um documentário.

- O que me faz simpatizar pela menina é que ela é inocente e é retratada de maneira muito digna (diferente do protagonista de Beasts of No Nation, por exemplo, que é corrompido pelo sistema). Em geral ela está com uma atitude serena, mantendo o controle. Se fosse uma menina desesperada, sofrendo do começo ao fim, daí seria uma ênfase excessiva na tragédia, um elogio à vitimização que tornaria o filme desagradável.

- SPOILER: Alguns momentos que poderiam ter sido dramáticos são feitos de maneira bem descuidada. Por exemplo: no começo, os comunistas pegam as roupas da família, inclusive um vestidinho da protagonista. Só depois, em flashback, ficamos sabendo que a menina tinha certo apego por aquele vestido. Se o filme quisesse ilustrar direito o quão maligna é essa ideia de igualitarismo, ele poderia ter preparado isso muito melhor. Mostrado antes algum objeto que fosse especial / insubstituível pra menina... E daí criado um momento dramático na hora que os comunistas tirassem isso dela. Outro momento feito de maneira bem preguiçosa é o reencontro com os irmãos, depois que os 3 haviam sido separados por um tempo. Eu achava que eles nunca mais iriam se ver. Esse reencontro deveria ter sido um momento de enorme emoção (imagine A Cor Púrpura), mas tudo acontece de maneira tão rápida e confusa que de primeira eu achei até que fosse um sonho.

- Fortes as cenas de violência (o campo minado, etc). O filme me emocionou em alguns momentos, mas isso por saber que é uma história verídica, e também por simpatizar pela personagem - não porque a história em si é particularmente bem contada.

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CONCLUSÃO: Interessante por ser um raro filme sobre o comunismo, mas acaba não sendo muito satisfatório como discussão política, nem como a jornada pessoal de uma garota. É apenas um retrato de pessoas sofrendo, com o intuito de denunciar o Khmer Vermelho. O filme tem um propósito mais jornalístico / social do que artístico.

First They Killed My Father: A Daughter of Cambodia Remembers / Camboja, EUA / 2017 / Angelina Jolie

FILMES PARECIDOS: Beasts of No Nation (2015) / Indomável Sonhadora (2012)

NOTA: 6.0

domingo, 8 de outubro de 2017

Pseudo-sofisticação

(Capítulo 24 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)

Na crítica de Blade Runner 2049 (2017) que fiz no meu blog, eu o comparei a filmes como A Chegada (2016), Interestelar (2014) e Mad Max: Estrada da Fúria (2015), e uma coisa que notei em comum entre esses filmes é que são todos filmes comerciais, de gênero, que fizeram um grande sucesso de público e crítica. Outra coisa em comum é que eu não gostei de nenhum deles (pelo menos não gostei tanto quanto a maioria).

Sempre me sinto meio mal de criticar filmes como esses, pois, julgando de forma superficial, esses deveriam ser os filmes que eu mais deveria apoiar, pois eles tentam trazer certa sofisticação para o cinema comercial (se comparados a entretenimentos mais enlatados, como filmes da Marvel etc.). Eu sempre defendo a união entre arte e entretenimento — por que então essa minha “mania” de sempre dar notas baixas para esse tipo de filme?

A questão para mim é que o que esses cineastas estão trazendo para o cinema comercial não é de fato sofisticação. É outra coisa. Quando eu digo que gosto de entretenimento inteligente, eu quero dizer literalmente “inteligência” no sentido de racionalidade, capacidade mental, conhecimento e sabedoria. Eu quero ver que o autor é alguém que, além de querer me proporcionar uma experiência positiva, é alguém que realmente compreende o mundo de uma maneira especial, que entende da linguagem do cinema, tem domínio narrativo, bagagem, talento, um gosto apurado, se comunica com precisão com o espectador, respeita a racionalidade da plateia, é alguém que tem uma ampla cultura que vai além do cinema simplesmente (tem conhecimento sobre outras artes, sobre psicologia, filosofia, ciência, política, experiência de vida etc.).

Não é nada disso que eu percebo nos filmes citados no primeiro parágrafo. Esses filmes podem até soar mais inteligentes e sofisticados que o blockbuster rotineiro, mas isso não acontece por eles apresentarem essas qualidades, e sim por causa de alguns truques usados pelos cineastas, que acabam muitas vezes iludindo o espectador menos atento.

O que vou discutir aqui é uma espécie de Idealismo Corrompido, mas que surge com um propósito diferente (as duas coisas muitas vezes se sobrepõem e se tornam indistinguíveis, mas acho importante discuti-las separadamente). Os Idealistas Corrompidos, em geral, querem apenas entreter, agradar o público, e inserem elementos Anti-Idealistas na obra, pois eles refletem seus valores reais e os valores predominantes na cultura. Já nesse caso, o desejo do artista é parecer inteligente, “cerebral”, ganhar créditos com a crítica. São diretores que costumam admirar cineastas como Stanley Kubrick, que querem ser apreciados por suas “mentes brilhantes”, mas que em vez de conquistarem isso de fato sendo geniais, tentam cortar caminho, pegar atalhos — imitam certos elementos de estilo, certos trejeitos que dão apenas um ar de sofisticação intelectual para a obra.

Um desses truques, por exemplo, é o uso do Subjetivismo. É inserir dentro de um gênero “pipoca” coisas como finais abertos, tramas ambíguas e contraditórias, simbolismos incompreensíveis, reviravoltas inexplicáveis, borrando de propósito a linha entre sonho e realidade, sugerindo que nada é real, que a razão é ilusória, que não podemos entender direito o que acontece ao nosso redor, que não devemos buscar consistência, explicações fáceis, que o ser humano é caótico e complexo.

Outro truque é apelar para o pessimismo — enfatizar o trágico, o melancólico, exibir uma visão de mundo malevolente, trazer para gêneros tradicionalmente escapistas e divertidos temas deprimentes, um clima sombrio, cores frias e dessaturadas, mostrar personagens que sofrem do começo ao fim, relações conflituosas, apelar para a violência, para a feiura, apresentar heróis moralmente duvidosos, histórias com uma visão pessimista do ser humano e da vida.

Um outro truque é o de negar para o espectador as emoções de orgulho e autoestima. Em vez de apresentar heróis, figuras admiráveis, o filme se propõe a revelar o lado mais frágil e “humano” dos protagonistas, enfatizar seus problemas, as dificuldades e falhas que eles dividem com o resto da humanidade, mostrá-los de forma frágil, patética, cômica, ou simplesmente realista.

Ou então negar diversão e prazer para o espectador, tornando a narrativa intencionalmente lenta, monótona, sem ação, evitando sentimentos positivos, mostrando personagens antipáticos, entediados, situações pouco atraentes, discutir temas indigestos, ter um final propositalmente frustrante.

Nenhuma dessas atitudes de fato demonstra inteligência, no sentido que defini aqui. Se você parar para pensar, o que esses cineastas estão fazendo é apenas negar certos valores desejados e esperados pelo espectador — subverter de propósito algum dos 4 pilares Idealistas.

Ser capaz de “desconstruir” algo, de negar um valor só por negar, não é sofisticado ou inteligente, exceto talvez no sentido de que não é algo que crianças ou pessoas totalmente ignorantes saibam fazer. É preciso um certo nível de experiência (e pretensão) intelectual para começar a se comportar dessa forma. Mas isso não é uma demonstração de inteligência ainda. No máximo, isto prova que a pessoa já saiu do nível mais básico de intelecto, que ela não faz parte das massas mais ignorantes que só conseguem assimilar prazeres fáceis e imediatos — da mesma forma que começar a fumar pode fazer um garoto sentir que ele não é mais uma criança —, mas ainda não é o suficiente para provar que ele é um adulto.

Vemos frequentemente essa atitude em alguns estilistas de moda, por exemplo, que apresentam roupas inquestionavelmente feias em seus desfiles: beleza é toda a essência dessa indústria, então, ao subverter justamente esse elemento, negar aquilo que agradaria os olhos do espectador, eles acham que se tornam mais sofisticados por algum motivo. É como se a capacidade de questionar, de rejeitar ou reprimir prazeres básicos já provasse que a pessoa é evoluída. Esse fenômeno pode ser observado facilmente em tudo aquilo que envolve experiências sensoriais: repare que comidas consideradas sofisticadas tendem a ter sabores estranhos, quase desagradáveis, que músicas consideradas sofisticadas (por intelectuais e críticos) tendem a ser dissonantes, pouco divertidas — e que as pessoas que aceitam essa dicotomia estão sempre prontas para menosprezar tudo aquilo que dá prazer, simplesmente pelo fato de dar prazer: zombam de música popular, de perfumes obviamente agradáveis, comidas que todo mundo gosta, se alienando de prazeres naturais e legítimos numa eterna tentativa de se distanciar das massas, de ganhar status, de pertencer a uma elite.

Observem que no meu conceito de “entretenimento inteligente”, a inteligência não exige a destruição do entretenimento. São duas coisas que se complementam e podem coexistir. Na minha visão, seria perfeitamente possível um filme da Xuxa ser altamente inteligente, uma verdadeira obra de arte, sem prejudicar em nada a diversão do público infantil. Da mesma forma, um filme do Bergman poderia se tornar altamente estimulante e prazeroso sem perder nada em sensibilidade e maturidade. Nunca há uma boa razão para fazer algo de maneira pobre, superficial, sem inteligência, sofisticação, assim como nunca há uma boa razão para deprimir o espectador, irritá-lo e matá-lo de tédio. Mas na medida em que você acrescenta elementos como subjetivismo e pessimismo num filme para torná-lo mais “inteligente”, necessariamente, você o torna menos divertido.

Esses artistas podem estar partindo do erro comum de achar que existe uma contradição fundamental entre inteligência e felicidade, entre prazer e sofisticação. Eles concordam com a noção de que a “ignorância é uma bênção”, que inteligência nos leva automaticamente ao pessimismo, a incertezas, à falta de confiança — e, consequentemente, que felicidade, otimismo, convicções, autoestima, tudo isto só pode ser sinal de burrice.

Ou então podem simplesmente ser do tipo elitista que descrevi antes, que estão tentando se diferenciar das massas “inferiores”. Seja qual for o motivo, essa é uma maneira tola de lidar com a questão, e o que acaba acontecendo com esses filmes é que, na tentativa de trazer inteligência para o entretenimento, eles acabam não sendo nem inteligentes, nem divertidos.

O que estou questionando neste momento não é nem tanto o pessimismo, o subjetivismo em si, e sim a atitude de usar desses artifícios como estratégia para tentar deixar uma obra mais sofisticada. É como o exemplo anterior do garoto que fuma para tentar te enganar que ele já é adulto. Se você é um homem bem-sucedido, responsável, culto, experiente, e você fuma, eu posso até não gostar desse hábito, mas não diria que você é uma fraude por isso. Mas se você é um moleque sem nada na cabeça, fumando para tentar parecer um adulto, como se isso em si já fosse prova, daí você é um tolo. É isso o que esses cineastas estão fazendo: eles estão inserindo elementos destrutivos em seus filmes (associados a filmes mais artísticos) para tentar parecer mais sofisticados, mas sem demonstrar as qualidades essenciais de filmes que são de fato sofisticados.

Para trazer racionalidade, inteligência, sofisticação e qualidade técnica para um filme popular, você não precisa diminuir em nada o prazer da experiência (pelo contrário, o fato dessas virtudes estarem presentes tornará o filme ainda mais prazeroso). Há uma história sobre Walt Disney que diz que ele fez questão de que, no carrossel da Disneyland, a tinta dourada que pintava os cavalos fosse realmente feita de pó de ouro de 23 quilates. Essa é a atitude certa para alguém que quer trazer mais qualidade para o entretenimento. Você não precisa tornar a experiência mais desagradável — tem apenas que inserir riquezas. Mas na cabeça desses cineastas atuais, para você tornar um carrossel como o de Walt Disney mais sofisticado, seria preciso pintá-lo de cinza, diminuir a velocidade do brinquedo até o ponto do tédio, colocar cavalos abatidos, mutilados na guerra, tocar uma música fúnebre etc.

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Blade Runner 2049

- Antes de falar do novo, é bom dizer que não sou exatamente um fã ardoroso de Blade Runner, o Caçador de Andróides. Acho que é uma das produções visualmente mais espetaculares já feitas, uma verdadeira obra-prima em termos de design de produção, direção de arte, fotografia, etc - mas sempre achei a história sem força dramática, a investigação pouco envolvente, o protagonista meio distante e impessoal, além de não gostar do clima melancólico, da visão deprimente do futuro, etc. Ainda assim, há tanto talento e originalidade na produção (a trilha sonora icônica de Vangelis, por exemplo) que eu ainda tenho bastante respeito pelo filme.

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NOTAS DA SESSÃO:

- Visualmente o filme impressiona se comparado a filmes atuais em geral. Mas comparado com o Blade Runner original, ele é menos sofisticado. No antigo, cada centímetro de cada cenário parecia cuidadosamente planejado, criado especialmente pro filme e nos transportava pra um mundo jamais visto. Todos os cenários eram deslumbrantes. Aqui, você tem algumas cenas pontuais com enquadramentos espetaculares (a maioria está no trailer), mas no decorrer do filme você tem um visual mais casual e realista do que o primeiro, com menos cor e algumas sequências em ambientes que parecem ser até aqui do nosso mundo.

- No começo a história é um pouco parada. 'K' (Ryan Gosling) não age por uma motivação pessoal, está apenas cumprindo seu dever de forma apática (nós não torcemos pra ele matar replicantes, a descoberta de que replicantes podem ter filhos não parece impacta-lo especialmente, etc).

- As cenas envolvendo aquela "esposa" de holograma não são muito fortes (o sexo a 3 mais pro meio do filme), afinal o 'K' também é um robô. Toda essa discussão sobre inteligência artificial só ganha uma dimensão moral interessante quando se trata de um relacionamento entre um humano e uma máquina, e a máquina começa a se parecer demais com um humano (como em Ela, 2001: Uma Odisséia no Espaço, etc). Mas se 'K' também é uma pessoa artificial, fica estranho o filme retratar essa relação com esse tom de cinismo - mostrando o "vazio" moderno de uma pessoa real se relacionar com uma máquina, etc.

- A trilha sonora é impactante, mas não chega a ser boa música (pelo visto Hans Zimmer não precisa de Christopher Nolan pra abraçar essa tendência). São efeitos sonoros agressivos e diferentes - e um monte de BAUM.

- Em termos de narrativa, esse filme tem uma dose bem maior de névoa e subjetivismo do que o primeiro (outra influência de Nolan?). No primeiro, seguíamos uma trama totalmente clara e compreensível. Os elementos subjetivos (sonhos, origamis, etc), eram claramente destacados da trama principal. Aqui, há uma série de cenas mal explicadas, tecnologias incompreensíveis, detalhes confusos propositais que vão tirando o espectador do comando da história, dando um clima intangível pra tudo.

- SPOILER: Quando 'K' começa a desconfiar que é o filho perdido da Rachael, isso cria um drama mais pessoal pra história que não havia antes, o que é bom.

- SPOILER: Faz sentido o 'K' encontrar o cavalinho de madeira no lugar que ele lembrava ter escondido? Afinal, mesmo que a memória não seja dele, por que a pessoa que escondeu o cavalo ali não teria ido buscá-lo depois que se livrou dos bullies? Sendo que era algo tão precioso pra ela? E se essa é uma memória pessoal da Dra. Stelline distribuída pra vários replicantes, um outro replicante antes de 'K' já não o teria encontrado ali nesses anos todos? É o tipo de toque confuso que vai deixando o filme meio "Nolanesco".

- Uma coisa é fato, o filme tem diálogos bem ruins e superficiais. Algumas frases beiram o trash. Se fosse um filme de ação despretensioso eu não ligaria, mas pra um filme que pretende discutir temas filosóficos, profundos, isso é algo que prejudica.

- SPOILER: Por que o 'K' tem essa reação dramática quando descobre que o cavalinho é uma memória real? Ele ainda não sabe se é uma memória dele. E 'K' é um cara distante, frio, não combina com ele explodir assim. Não há contexto psicológico. Parece que isso é só porque o cineasta quis 1 momento mais visceral pro Ryan Gosling poder competir ao Oscar. Mas torna a cena meio confusa... Eu por exemplo comecei a pensar na teoria de que o Ryan Gosling poderia ser uma pessoa real, e que a empresa do Wallace estava secretamente sequestrando seres humanos, fazendo uma espécie de lavagem cerebral pra eles pensarem que eram replicantes (aquele teste que 'K' passa na empresa diariamente na sala branca), e usando os humanos como escravos - o que faria muito mais sentido no contexto da história, já que o grande problema de Wallace é não conseguir fabricar tantos replicantes quanto gostaria para o seu projeto (o que é bem improvável considerando a tecnologia da época). Aliás, toda essa meta do Wallace de querer engravidar replicantes é muito ruim. Até parece que isso seria mais prático e produtivo do que simplesmente fabricar mais.

- Falso o 'K' mentir pra Joshi (Robin Wright) dizendo que matou a tal criança replicante, e ela acreditar sem nenhuma evidência, só porque ele disse. Não há nenhum protocolo básico quando se "aposenta" um replicante?

- Veja a insanidade desse roteiro: o 'K' descobre uma radiação no cavalinho, e segundo o expert essa radiação por algum motivo só poderia ter vindo de Las Vegas (isso já seria forçado o bastante). Daí 'K' vai até lá, décadas depois do cavalinho ter sido feito, e encontra facilmente o Harrison Ford, justamente a pessoa que ele procurava.

- Todo esse encontro entre os 2 é péssimo. O diretor usa lentidão pra dar criar um clima épico e cerimonioso pra tudo, sendo que na história em si não há nada de épico acontecendo. Harrison começa a atirar no Ryan Gosling sem nenhuma necessidade, os 2 começam a lutar de forma estúpida... É uma tentativa artificial de acrescentar drama a um filme que não tem nenhum (oh, Deckard aparece pela primeira vez desde 1982, precisamos fazer qualquer coisa pra tornar esse momento intenso!).

- SPOILER: Tem alguma lógica a Dra. Stelline que fabrica as memórias (e que estava ajudando o 'K' na investigação) ser justamente a filha do Harrison Ford? Ou é só mais uma coincidência pra dar aquela sensação de que o universo é um lugar misterioso com uma ordem mística que não devemos tentar entender (e que permite o roteirista se safar com qualquer ideia que passe por sua cabeça)?

- SPOILER: O clímax é simplesmente fraco. A ação é ruim, visualmente não há nada de épico nesse carro meio afundado na água, a vilã morre de forma esquecível, a trilha é um zumbido constante que nem se pode chamar de música, a ideia do 'K' resolver se sacrificar por uma causa maior é clichê e tediosa... E o reencontro do Deckard com a filha não emociona (a personagem é meio sinistra, o filme não cria nenhuma empatia por ela).

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CONCLUSÃO: As "táticas Nolan" tornam a produção imponente num nível superficial, mas na realidade é um filme mal escrito, mal dirigido, feito sem 1/5 do talento e do bom gosto do primeiro.

Blade Runner 2049 / EUA, Reino Unido, Canadá / 2017 / Denis Villeneuve

FILMES PARECIDOS: Alien: Covenant (2017) / A Chegada (2016) / Mad Max: A Estrada da Fúria (2015) / Interestelar (2014)

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NOTA: 4.5

terça-feira, 3 de outubro de 2017

Simbolismo e Filmes Interpretativos

(Capítulo 22 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)

Uma das regras da Objetividade é que um filme não deve depender de um manual para fazer sentido, de um “guia de usuário”: ele deve tentar ser o mais universal e autocontido possível. Não deve esperar que o espectador tenha lido entrevistas com o diretor ou tenha qualquer tipo de conhecimento externo especializado para funcionar.

Um artista que tem respeito pelo espectador não o deixa no vácuo. Não o abandona numa narrativa confusa, tediosa, guardando o “ouro” todo para si e para aqueles poucos que conhecem seu segredo. Os que fazem isso são apenas os pretensiosos e mal-intencionados, que desejam exibir suas supostas “inteligências” às custas da plateia — fazendo ela se sentir inferior, burra, sem confiança na própria mente (essa atitude no fundo só revela a imaturidade intelectual do próprio artista — pois sugere que ele associa inteligência a coisas que são incompreensíveis, fora do alcance da razão, e que filmes sofisticados para ele são aqueles que ele nunca conseguiu entender).

Claro, nem todo filme precisa ser entregue inteiro mastigado para o espectador. Pelo contrário, alguns dos melhores filmes são aqueles que mais exigem de nossa inteligência e percepção. Há um grande prazer em poder descobrir algo sozinho assistindo a um filme, fazer uma conexão surpreendente, desvendar o significado abstrato por trás dos acontecimentos, das técnicas usadas pelo artista. Mas o cineasta honesto e bem-intencionado quer que o espectador tenha o prazer de descobrir as coisas por si só, usando apenas lógica, e quer que ele faça isso através da obra, não do Google depois da sessão. Ele sabe que ninguém na sala de cinema é vidente, tem bola de cristal, portanto, ele irá se comunicar racionalmente, deixando pistas concretas na obra que possam levar a uma interpretação válida. O cineasta que é de fato inteligente, maduro, não tem interesse em esconder suas ideias do público, tornando impossível entender o que ele está pensando. Os que gostam de fazer isso, em geral, são aqueles que não têm nada real para mostrar, e por isso “tornam suas águas turvas para que pareçam profundas”.

Do ponto de vista do espectador, é preciso também haver uma motivação para que ele queira decifrar o significado por trás desses filmes mais interpretativos. Ele precisa ter razões suficientes pra acreditar que aquilo que o autor está ocultando é uma ideia valiosa que merece ser descoberta. E, pra isso, o filme tem que ter sido brilhante já num nível primário, superficial. Quando você assiste 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) e as coisas começam a ficar surreais mais para o final, você já viu tantas ideias originais, tanta inteligência, talento e consistência ao longo do filme, que se torna irresistível querer entender o significado por trás desses outros eventos menos compreensíveis. O cineasta já ganhou sua confiança. Agora, se um filme é repleto de personagens vazios, clichês, diálogos tolos, cenas desagradáveis, e não te diz nada de realmente inteligente num nível primário, por que você iria imaginar que aquilo que o cineasta está ocultando é justamente o que torna o filme genial? Seria como uma pessoa se vestir como um mendigo, ser estúpida com os outros, cheirar mal, e depois reclamar que ninguém quis se aproximar para descobrir o verdadeiro gênio por trás daquela aparência.

Há alguns casos de filmes mais abstratos/surrealistas que eu respeito, mesmo sem entender a mensagem total da história. Isso acontece quando a experiência do filme é prazerosa cena a cena, quando o filme é brilhante tecnicamente, demonstra conteúdo e riquezas em outros aspectos (na construção dos personagens, nos diálogos, na direção de cenas individuais), de forma que ele não dependa de uma explicação total em termos de trama para ter valor. Alguns cineastas conseguem fazer isso de maneira talentosa, como David Lynch ou mesmo o já citado Stanley Kubrick. Voltando ao exemplo de 2001 — mesmo que você não entenda o feto gigante flutuando no espaço numa primeira assistida, nada vai te tirar o prazer que cada ato do filme proporciona, o trecho da missão para Júpiter, por exemplo (o confronto memorável com o HAL-9000), que é um deleite em si, independentemente do que você conclua no fim.

Se eu passei duas horas tendo prazer, vendo bom conteúdo e talento real na tela, eu não me importo de voltar para casa com algumas perguntas no ar. E também não me importo que o diretor inclua algumas idiossincrasias suas na obra — se ele for bem-intencionado e brilhante o bastante para merecer isso. Mas se a experiência é incompreensível, sem riquezas evidentes, e ainda por cima desagradável, tediosa, com personagens horríveis, uma visão de mundo maligna, daí não há mensagem oculta que possa transformar isso em algo bom. O simples fato do artista ter escondido ideias de você e usado códigos e símbolos para representá-las não as torna automaticamente profundas e inteligentes (nem torna o artista mais inteligente). Como teste, pergunte-se: se a simbologia do filme for explicada de forma clara, explícita, ela continua sendo uma ideia inteligente, criativa, interessante? Ou de repente soa banal e comum?

Os melhores filmes só adicionam camadas mais abstratas à história depois que eles já garantiram valor para o espectador num nível mais básico — quando um filme já tem uma narrativa envolvente, uma linha de interesse sólida que funcione por si só. Você pode assistir O Iluminado (1980) apenas como um filme simples de terror, torcendo para que Danny e Wendy escapem vivos do hotel, e você pode assisti-lo depois mais dez vezes tentando decifrar seus elementos mais misteriosos. Independentemente da explicação para os eventos, o filme tem um sentido básico, demonstra virtudes cena após cena, te envolve, constrói ótimos personagens, tem cenas fantásticas, ideias originais, ação, suspense, um clímax satisfatório etc.

Esses princípios valem para quaisquer elementos subjetivos/surrealistas/simbólicos/alegóricos que possam surgir num filme — tudo aquilo que fuja intencionalmente de um nível de comunicação direta com o espectador.